domingo, 2 de abril de 2006

A História se repete

Diálogo entre as obras “Ilusões Perdidas” de Honoré de Balzac e “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto

Uma narrativa ambientada na Paris pós-Revolução Francesa. A outra, no Rio de Janeiro, em um Brasil, ainda colônia, que assistia às primeiras décadas de República. A primeira remete a obra “Ilusões perdidas”, de Honoré de Balzac e a segunda, ao livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto. Há um ponto em comum: o eixo norteador no qual está inserido o personagem, inquieto e sonhador, movido por uma busca incessante. Inserido em uma realidade sem perspectivas, tanto Lucien Chardon, de Balzac, quanto Isaías Caminha, de Lima Barreto, personificam o inconformismo, a ambição, a decepção, o conformismo e a entrega.
Vindos do interior, Lucien – com suas poesias e seus originais românticos embaixo do braço, ávido por publica-los – e Isaías – procura resgatar a memória do pai, falecido, modelo de inteligência e fugir do estigma da ignorância de sua mãe – foram movidos pelo desejo de ser alguém na vida. Era em cidades grandes, como Rio de Janeiro e Paris, que havia terreno propício para construir uma vida de sucesso e reconhecimento. Era lá que as coisas aconteciam.
Ainda hoje, há nutrida a idéia de que a cidade grande dá oportunidades. Essa afirmativa dita, dessa forma, sem adendos, pode ser perigosa, até mesmo falaciosa. É inegável que a complexidade das grandes cidades seja terreno fértil para produção, principalmente quando se fala em jornalismo. A efervescência cultural é singular em grandes centros urbanos. Na mesma proporção, há um excedente de pessoas, sedentas por um lugar ao sol. Exige-se mais qualificação, aumenta a competitividade de maneira desleal e...onde estão as oportunidades? Esse é o jogo. Nesse sistema, os personagens vão ter que se amoldar.
Interessante notar como os personagens, mergulhados nesse mundo real, o percebem mais cruel e menos poético, e passam pelo processo de perda da inocência, da pureza que carregavam na essência, para dar lugar a ambição e ao desejo de projeção profissional. Assim, se entregam aos meandros do competitivo meio das relações de trabalho.
Decepções, como as recusas que recebeu Lucien ao tentar publicar uma de suas obras, e humilhações, como o fato de Isaías ser mulato num país de tradição escravista, vão construindo os destinos dos personagens. Hesitações os fazem, às vezes, parar para pensar em desistir, mas se mantêm firmes no intento.
Uma diferença na trajetória dos dois personagens merece ser apontada. Lucien, sempre nutriu a paixão pelas letras, queria ser literato e acreditou no jornalismo como caminho; percebeu, no entanto, o abismo existente entre a produção jornalística rentável e a literária. Isaías trazia um histórico de formação em humanidades, mas chegou a falar em medicina; acabou, por força das circunstâncias, trabalhando com as palavras.
Os acontecimentos vão conduzindo cada um dos personagens para um caminho de difícil regresso. Fazem concessões, trocam favores, conhecem o poder da influência e imersos nesse jogo de interesses, que não é exclusividade do jornalismo, mas da vida, percebem o quanto pode ser interessante transitar neles. Tudo tem dois lados, necessariamente sedutores.
Há expectativa em fazer um jornalismo mais livre, menos preso ao “modelão” do lead – que não busque apenas responder quem, o que, quando, como, onde, por que – e que, em última análise, pretende volver os olhos para os fatos e trazer o leitor à reflexão. É possível? Não se pode esquecer que a lógica capitalista move as relações sociais e o olhar do jornalista está imerso nesse contexto. E aí reside a crítica concebida pelos autores em cada livro: a “industrialização” do jornalismo, a informação como mero produto. Os personagens dos livros, cada um a seu modo, compreenderam isso. E entenderam como sonhos podem não passar de ilusões, de recordações.

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