quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Desimplicância

- Você também pediu café?
- Pedi. Dscafeinado.
- Que graça tem? O café descafeinado é a negação do café, portanto não é café.
- Bah, não quero discutir com você, você é muito implicante. Vamos voltar a falar de trabalho...
- Pó pará aí! Eu, implicante? Baseado em que você diz isso?
- Em tudo oras bolas. Não sei se sou eu ou o resto do mundo, mas você sempre tem um comentário a fazer, uma opinião, uma carta na manga, entende?
- Não sou implicante, apenas tenho bom domínio da retórica.
- Você é cheia de graça. Queria saber como faço para deixá-la sem!
- Sem graça?
- ahã
- Sem graça eu não sei, mas sem paciência eu já estou.
- Você não consegue ficar brava comigo.
Pausa. Ela baixa a cabeça. Depois olha prá ele.
- Não mesmo, desgraça. Mas o lance de implicante é que eu não entendi.
- Ah, sei lá. Tipo, qual o problema em tomar um café descafeinado?
- Simplesmente é a coisa mais sem emoção do mundo. É como tomar leite desnatado, chocolate sem cacau...são coisas que não podem estar dissociadas, que fazem parte uma da outra, que não existem plenamente quando separados...
Parei ao notar que ele me olhava. Não mais cheia de graça olhei. E senti um horror lancinante. Horror ao perceber que estava presa para sempre àquele olhar.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Como não se comportar numa entrevista - parte 1

Final de ano. Para quem está com as mãos abanando é hora de virar franco atirador. Esse é meu caso. Me inscrevi em 238697 processos seletivos. Quando ligam em casa para agendar entrevista essas bobagens todas tenho que puxar na memória "ah, esse é o 3457° que eu me inscrevi". As vezes, o descarte pode acontecer na hora do agendamento, pois pode ter sido resultado de um momento desesperador e descontrolado. De sua parte, é claro.

O outro descarte é mais traumático. Mulheres de Recursos Humanos deveriam ser interditadas. Nada contra as mulheres, mas aos recursos que elas insistem em dizer que são humanos.

Guardo com carinhoso pavor algumas histórias. Reproduzirei fielmente os diálogos e farei comentários entre parênteses.

"- Vocês podem sentar-se. A entrevista será aqui.
- Aqui? (aí está o primeiro erro: como fazer uma entrevista em dupla, ou seja, eu e minha concorrente na frente da mulher do RH)
- Sim. (elas quase sempre são monossilábicas)
- Quem fala primeiro?
- Eu gostaria, pode ser? - pergunto"

Ambas concordam, a RH e minha concorrente. Aí começo a me apresentar, toda aquela cantilena, que não reproduzirei aqui.

"- E por que escolheu a nossa empresa? (putaqueopariu, que pergunta inútil! o que ela quer saber? se a gente acha a empresa bacana? é obvio que sim, senão não estaria perdendo o Vale a pena ver de novo prá ficar olhando prá cara de insatisfeita dela - isso é outro capítulo que será abordado mais prá frente: moças de RH tem cara de insatisfeitas, prá ser educada, é pré requisito para ser uma RH)"
Sem saída, me vejo obrigada a fazer algo que me enoja: pagar pau para a empresa, dizer que gosto de desafios e que acredito que o emprego vai me proporcionar isso. Ou seja, nesse ponto você finge que fala a verdade e a RH finge que acredita. Uma hipocrisia nojenta.

"- E você mora sozinha?
- Com uma garota, mas não é de programa - fazendo uma gracinha para quebrar aquele clima." (Sim, concordo que foi desnecessário, mas saiu e boa).
Minha concorrente riu, timidamente, mas riu. A RH se manteve gélida e inexpressiva (ah, essa é outra característica para ser uma RH bem sucedida). Não podia confessar que tinha achado graça, mas notei um ventinho no lado esquerdo do lábio superior, denunciando que continha o riso.
Ela me faz mais algumas perguntas inócuas e vira-se para a outra garota, para começar a segunda entrevista. O mesmo se repete. Eu fico olhando prá garota, enquanto ela responde as perguntas, e fico me perguntando que merda me passou pela cabeça para me sujeitar àquilo tudo. O que a pindaíba crônica não faz, não?
"- Uma merda... - opa, fui traída pelo inconsciente
- Desculpe? - me interpela
- Desculpe eu, tive um ato falho - aproveitei para demosntrar meu insignificante, porém válido, conhecimento em psicologia
- Isso não é ato falho, isso é falta de educação
Fiquei tão p da vida. Foi um tapa no estômago, porque soco já seria exagero. Me enchi de toda aquela encenação.
- É sua cara - tomei coragem
Minha concorrente arregalou os olhos. A RH, não preciso repetir, aumentou o tom de voz, mas os músculos da face não se movimentaram um milímetro. Tenho razões prá achar que usava botox.
- Não estou entendendo...o que tem minha cara?
- Uma merda, entendeu? Poderia ter uma merda falando com a gente no lugar da sua cara.
- O quê? - indignada
A concorrente ficou vermelha e com as mãos na boca conteve uma risada prestes a explodir.
Continuei:
- Você não fala se tá gostando do que a gente fala ou não, não se manifesta, não interage, nem se permite rir quando acha graça de alguma coisa...é séria, inerte, como uma merda.
Levantei e saí. Acho que ela iria me dizer impropérios, mas não deu tempo.
Perdi a vaga, mas saí de lá tão leve, tão bem, que acredito ter valido a pena. Foi o equivalente a uma sessão de terapia.

Ainda fui cumprimentada pela concorrente. Vê se não tenho razão...

Homenagem as queridas amigas psicólogas (e psicóticas!). Amo vocês! - Má, Lia, Lê e Mari. Sou psico de coração, sabem disso.