sábado, 29 de abril de 2006

Pequeno diálogo amoroso

- Ouvi dizer que a gente daria certo...
- Quem disse isso?
- Ah, eu ouvi!
- Onde?
Esquiva:
- Por aí...
Um sorriso amarelo nos quatro cantos das bocas:
- Um passarinho da cor do amor!
- Qual é a cor do amor?
- Depende.
- Do quê?
- Do dia. Hoje ela está vermelha...
Ele vestia uma camiseta vermelha e jeans.
- ...e tem um toque tipo jeans também, sabe?!
- Sei. Mas que importa isso tudo?
- Importa que está escrito em algum lugar, e esse pássaro leu, e veio voando me contar.
- Você está dizendo que está predestinado?
- Se você acha isso...
- Não acredito nessas coisas. É tudo bobagem!
- O amor é bobagem?
- Então quer dizer que você me ama?
- ...
- Que bom! Você facilitou as coisas!

segunda-feira, 24 de abril de 2006

Os dois lados da moeda

Naquele dia eu saí bem cedo com minha mãe para irmos até a cartomante. Fomos resolver os nossos destinos tão complicados e que de tão diferentes se cruzaram.
Papai a deixou, grávida, e agora ela estava vivendo feliz um novo amor. Estava amando de novo. Eu estava atrapalhando. Mas mamãe não tinha coragem de se livrar do empecilho, porque era uma mulher, ainda que na imaturidade de seus dezessete anos, muito responsável. Ela estava perdida, não sabia o que fazer. Tudo o que eu queria era vê-la feliz. Por outro lado, queria merecer a chance de ao menos experimentar o gostinho de viver. Deve ser tão bom!
Eu já tinha dado sinal de vida antes desse moço por quem mamãe se apaixonou aparecer, mas ela preferiu mentir sobre a minha existência. Teve medo de ser julgada e abandonada outra vez. Antes sempre alegre, ela caiu numa terrível depressão e eu também, porque tudo que mamãe vê eu vejo, tudo que mamãe sente eu sinto.
Tudo isso me fazia ter crises existenciais; apesar da barriga da mamãe ser muito aconchegante, queria me libertar, criar uma identidade própria...Queria sair da escuridão!
Enfim, chegamos à casa roxa da cartomante. Ao entrarmos, o cheiro de incenso penetrava nos poros o que me deixou um pouco atordoado. Mamãe ficou com dor de cabeça, mas acho que era de preocupação. Começou a chorar e contar sua triste história à cartomante que rapidamente pôs as cartas do tarô na mesa e deu resposta às dúvidas de mamãe.
Aquela angustiante espera de mamãe me provocou náuseas e começei a me debater, fazendo com que ela lembrasse que eu ainda estava ali. Estaria sempre ao seu lado, se ela assim desejasse. Era uma questão de escolha.
Sem antes ouvir a resposta, saiu da casa meio a esmo. Fomos parar numa clínica de aborto. Não conseguia odiá-la, pois era minha mãe e muito menos ao moço, pois ela o amava, talvez mais que a mim.
As paixões são incertas. Fico só pensando se vale a pena trocar uma relação estável por uma aventura. Pode ser que sim, pode ser que não.
Será que sentiria culpa ao me ver morto? Indefeso, eu não tinha culpa por ela estar naquela situação. Só podia confiar no bom senso. Mas não sei dizer se nessa situação o mais sensato seria me poupar. De qualquer maneira haveria uma morte: ou a do filho, ou a da paixão adolescente. Nunca é possível ficar com dois lados de uma moeda: quando escolhe um, o outro fica automaticamente descartado. Veja o meu caso, por exemplo, se escolher nascer, abandono o conforto do acolchoado ventre materno, mas terei o prazer de ver a luz de um dia de verão.
Entramos na clínica. Fiquei impressionado com a fila. Nesses tempos, anda cada vez mais fácil mudar de idéia. Mamãe não sentia-se bem. Imagens da vida passavam pela sua cabeça e a difícil decisão martelava seu cérebro, esmagando-o.
Decidiu. Saímos da clínica e fomos até a casa do moço de quem gostava muito, terminar o que nem havia começado. Abortou a possibilidade de amá-lo, já que ele era um moleque e seus sonhos não eram compatíveis com os dela. Quem sabe dalí a alguns anos eles se reencontrassem e fossem felizes? Seria obra do acaso. Nunca é bom contar com isso.
Os destinos meu e de mamãe, que antes apenas haviam se cruzado, se tornaram somente um. Ela seria minha mãe e eu seu filho e isso, nem o tempo, nem ninguém iria mudar.

quinta-feira, 20 de abril de 2006

Visita ao médico

1956
- Doutor, tá doendo muito.
- Espere um pouco, Helena!
- Tô sentindo um aperto no peito, será que é alguma coisa grave?
- Tenha paciência!
- Eu tenho dor!
O médico tentava acalmar a aflita Helena. Não podia examiná-la sem antes fazer a anamnese.
Há alguns dias, ela sofria calada uma dor intensa no coração.
- O que fez de diferente nos últimos dias?
- Me poupe doutor, não quero conversar. Quero que o senhor me diga o que eu tenho - disse com um riso cínico e irritadiço
- É o que eu estou tentando fazer - já impaciente
- Eu tenho medo de morrer - dizia sem parar - tenho muitas coisas para resolver na minha vida! - Se você me deixar examiná-la, saberei o que você tem.
Ela suspeitava de problemas irreverssíveis no coração, mas isso ninguém poderia perceber. Dona de casa dedicada, casou-se com um rico advogado com quem teve dois filhos. Cozinheira excelente. Era boa mãe. Tinha uma relação de suportabilidade com o marido.
- Ai ai, não quero morrer!
- A medicina muito avançou. Para vários males há tratamento.
Helena caiu num copioso choro. Nenhum deles sabia que o mal que ela sofria não era físico. O médico pegou sua mão e concedeu-lhe apoio àquele momento de desespero. Ela foi se acalmando.
- Tenho rezado muito, doutor.
- Exercitar a fé é sempre bom.
- Faço novena todo mês...
- Quando isso começou?
- Isso o quê? As novenas?
- Isso tudo: as novenas, as dores no peito?
- Nem me lembro mais - num suspiro - me sinto tão, tão infeliz...
O médico percebeu que confrontava um mal para o qual a cura não seriam os remédios.
- E o que você pede exatamente? - indagou astuto
- Que perguntas são essas? Peço para minha melhora, e para criar meus filhos, e para falar....e para criar coragem...
Confusa, desatou num choro ressentido e contido. O doutor apenas a observava e coçava o queixo. Excitada, mal conseguia respirar. Num sussurro, ela disse:
- Eu não posso, mas quero...eu, eu não sou como todas as mulheres...
Explodiu:
- Eu não quero arrumar a casa, eu não quero filhos, eu não quero carinhos de um bigode e... Percebeu que fora traída pela própria emoção. O médico arregalou os olhos, mas não se deixou levar pelo julgamento óbvio e instantâneo. Respirou fundo:
- Fale com ela.
- Falar com quem?
- Helena, você é adulta...
- É difícil saber o que dizer...
- Não, é simples: diga a ela que você a ama.

sábado, 15 de abril de 2006

O samba sabe o que diz

Há duas semanas, fui ao Samba da Vela, um projeto da Comunidade de nome homônimo, sediado em Santo Amaro. Além de celebrar o mais puro samba de raiz, a preocupação em conscientizar frequentadores sobre os cânceres da sociedade é presente nas letras das músicas e nas falas dos chefes da Comunidade. Fiquei impressionada ao perceber que o mesmo povo que grupos de intelectuais obsoletos alcunham de ignorante e alienado, não o é. O proletariado, a massa supostamente comandada pela aristocracia pós-moderna tem um projeto de resistência muito claro, mas não tem voz. Ai reside o cerne da questão.As letras dos sambas falam de amor, de política, de cultura, enfim, da vida. Falam do passado com nostalgia, do presente com desengano e de um futuro utópico.
O sambista Murilão, no alto do seus 70 anos, foi quem mereceu uma atenção especial na noite de ontem. Ao ser chamado a compor a roda, juntar-se aos seus, levou uma composição que falava da situação política do Brasil e dizia mais ou menos assim:
"Acabo de vir de Brasília, (ajeitando a gravata)
e vou contar a vocês meus amigos,
o que é o conselho de ética,
é uma doença morfética,
que por lá se espalhou"
Vou parar por aqui. Acredito não ser necessário mais nada dizer. O povo não é burro. O povo sabe. O povo fala. Os escândalos que o Brasil conheceu o ano passado, e que continua vendo ainda hoje, passam pela composição simples do Murilão. Do Conselho de Ética muito se falou, pouco se entendeu, nada se resolveu. Está na boca da roda de samba, que é o retrato do Brasil.
(em breve vou disponibilizar uma série especial para rádio sobre o Samba da Vela que ajudei a produzir)

terça-feira, 11 de abril de 2006

Mais um palhaço do circo sem futuro

O OESP, nessa última semana, não fala em outra coisa a não ser na metástase cancerosa que culmina em mais uma execução pública. Os holofotes estão em Suzane - outro câncer - a menina rica e assassina e a morte súbita do (i)maculado ministro da Fazenda Antônio Palocci.
Os jornalistas mais entendidos opinam, cientistas políticos e ex-petistas falidos e decepcionados o crucificam e ele, acredito, só faz piada. Aliás, o espetáculo circense está nos 45 do segundo tempo. É consenso entre os colunistas do OESP não descartar a possibilidade de Lula não terminar o ano no Palácio do Planalto. A OAB já se mobiliza em torno de um documento que pediria o impeachment do presidente Luis Inácio Lula da Silva.
O governo não perdeu mais um homem. Palocci significou, até o momento, elemento de redenção no julgamento que o povo fará em outubro desse ano. Para a opinião pública, ele não era apenas um dos únicos pilares da ala governista, mas aquele que havia conduzido os rumos da economia para o bom caminho. Ganhou respeito internacional - inclusive mudou a posição do Brasil na OMC - e alavancou os ganhos econômicos nos últimos anos. Estava executando um Ministério respeitável.Depois de se envolver nos escândalos com o carismático caseiro Nildo - palmeirense e gente da gente -, que tocou o coração dos brasileiros e teve seus quinze minutos de fama - quem não os quer? - foi enfiando o pé em um buraco profundo, onde lá no fundo havia uma jaca. Mole e podre. Aí, nem é necessário terminar a história.
O fato é que como todo réu, Palocci se declarou inocente, fez cara de dó e num momento de descontração fez a seguinte declaração: "A nossa economia está no céu. Já eu, estou mais para o lado do inferno de Dante"A piada é boa, mas a conduta merece cartão vermelho. Não acredito que ele estivesse em condições de fazer pilhéria - agora, menos ainda. Mas em se tratando de um espetáculo teatral, com fortes influências circenses ou mesmo da comédia dell'art, a cortina se fechou a semana passada. De palhaçada empatou com tantas outras figuras políticas destituídas do poder nos últimos meses. No quesito humor, ganhou em disparada. Fez humor negro da própria desgraça.

Crescer é muito difícil! - parafraseando Guimarães Rosa (licença poética)

A real medida das coisas: as escolhas e as perdas que elas implicam, a linha tênue entre afetividade e paixão e o abismo invisível existente entre confiança e traição, são alguns dos conflitos da alma abordados a partir de uma narrativa introspectiva, detalhista e ao mesmo tempo enxuta. O eixo temático de Longe da Água, de Michel Laub, escrito em primeira pessoa e com discurso indireto, é a culpa.
Ambientado em três espaços físicos – Porto Alegre, onde o narrador viveu a infância; Albatroz, a praia na qual passava as férias e São Paulo, que conheceu na maturidade – o livro usa o presente para falar de um passado que talvez não deixe saudade. Laura e Jaime são as figuras marcantes do livro e representam, para o protagonista, ao mesmo tempo alívio e angústia. As dúvidas enfrentadas na adolescência, a descoberta da sexualidade e a edificação de uma personalidade madura são temas corriqueiros que, para o autor, adquirem simbologias específicas no desenvolvimento da história.
Michel Laub fala com verdade e com sentimento, fator que deixa em aberto quanto do conteúdo do livro é autobiográfico. O que no início parece uma contenção de sentimentos se revela como necessidade de trazer à tona os pensamentos mais íntimos. Fica a questão como um mistério indissolúvel: cada um tem uma versão para o mesmo fato. A história do livro adquire curiosamente um caráter universal, provocando uma sensação de encaixe, uma espécie de ‘dejavú’.
É possível avaliar que o autor tem pela reflexão verdadeira adoração, elemento fundamental para a construção de um enredo carregado de conteúdo psicológico, que só se mostra à medida que a leitura vai prosseguindo. Entretanto, um ponto negativo na parte final do livro, momento que o leitor, imerso no universo dos personagens, não tem mais tempo para devaneios. O uso dos flash backs dão a impressão de obsessão pela idéia de que o personagem é marcado por algo mal resolvido.
O texto, embora seja delineado por um estilo do autor, não oferece nada de inovador ao leitor. O tema é recorrente em muitas obras da literatura. Apenas para citar: “Olhai os lírios do campo”, de Érico Veríssimo, apresenta estrutura e temática semelhantes ao Longe da Água.
Michel Laub não abre a porta de supetão; entra sorrateiro, sem que ninguém perceba. Prepara o leitor para situações posteriores, que vão se desenvolvendo ao longo da história. É um torpor sutil. As frases curtas, os capítulos reduzidos e o encadeamento das palavras na estrutura global do texto dão leveza e ritmo, como uma valsa de Offenbach; mas o significado que elas adquirem no contexto é pesado e denso, como um adágio de Bach. É como dizer um palavrão sorrindo. Falar dos conflitos da alma é demasiado complexo: aquilo que todo ser humano sente, mas nenhum tem coragem de falar.
O personagem cresce, amadurece, mas para isso sofre: sente-se culpado por coisas que poderiam ter sido diferentes, se assim ele quisesse, mas não foram, por outras tantas adversidades da vida. E ainda que um senhor – que alguns poderiam chamar de pai, outros de sábio – dissesse que há duas formas de aprender: pelo amor ou pela dor, a escolha unânime é pela segunda opção.

(O livro Longe da Água é do escritor gaúcho Michel Laub, radicado em São Paulo e editor da Revista Bravo!)

domingo, 9 de abril de 2006

Em tempo...

"A nossa economia está no céu. Já eu, estou mais para o lado do inferno de Dante"
(Antônio Palocci, há duas semanas, quando ainda não tinha 'cedido' o Ministério da Fazenda a Guido Mantega)

quinta-feira, 6 de abril de 2006

Tudo errado

Uma cena.

Baladinha. Uma birosca decadente: pouca iluminação, algumas mesas de bilhar e um palco de madeira, onde vivia uma colônia de cupins. A banda tocava sabe-Deus-o-quê, mas eu e uma amiga dançávamos. Sei que aquela noite tomamos muito frozen, porque na compra de um você ganhava outro.
Eu, àquela hora, estava com uma latinha de cerveja quente na mão. Esses bares que não vendem cerveja de garrafa são os maiores fins-de-carreira. Considerando a minha noção etílica, um cara de uns 40 anos estava próximo a nós duas. Ele estava mais louco do que todos os super-heróis juntos e tinha um bigode que deixaria qualquer mexicano que se preze no chinelo. A camisa aberta até o umbigo e umas várias correntes de prata, que mais parecia latão. Suava em bica e as pernas tremiam tanto num requebrado que era só dele. Parecia aquele burrico paraguaio, feito de madeira, todo articulado e com um mecanismo que é possível mexer cada um dos seus membros. Todo mundo teve um quando criança. Um marionete, desengonçado e bêbado, que dançava freneticamente.
Como não haveria de ser diferente, o cara estava se achando no direito de ocupar todo o minúsculo espaço da improvisada pista de dança. Esbarrava nas pessoas, pisava nos pés ao seu redor e era necessário desviar dos golpes despretensiosos da sua mão descontrolada. O problema foi quando ele nos focou. A música, antes a diversão da noite, passou a ser fator secundário; o principal para ele atazanar a mim e a minha amiga.
Esbarrou uma vez. Pisou no meu pé pelo menos cinco vezes. Empurrou minha amiga, não uma, mas três vezes. Acertou com a face da mão no braço da minha amiga. Esbarrou mais uma vez. Eu comecei a dançar exagerada e esbarrei, sem-querer-querendo, nele. Continuamos a curtir o som e a dançar. Apesar do inconveniente de carne e osso, eu estava muito tranqüila. A minha amiga, não.
Quando ele pisou pela oitava vez no pé dela, não hesitou:
- Ei - cutucando o ombro do cara - pára de pisar em mim!
- O quê?
- Pára de pisar em mim! - dessa vez gritou, bem próximo do ouvido dele.
Eu, distraída, estava mais em outro plano, alheia a discussão. Não ouvi, tampouco vi nada. Só senti o murro canhoteiro. A mão fechada, toda força raivosa de um homem bêbado e bigodudo, concentrada e explodindo no meu ombro.
Fui jogada para trás, desprotegida. Algumas pessoas que asistiam a cena vieram me acudir. O bigodudo foi atacado por todos os seres do sexo masculino presentes, revoltados com a atitude:
- Bater em mulher não, rapá - gritou um deles
O tiozão foi espancado e jogado para fora do bar. Eu, atordoada e nauseada pelo murro, percebi o que acontece quando a pessoa errada, está no lugar errado e na hora errada.

Francisco Buarque de Holanda

O Chico Buarque deveria ter um epíteto: O Gênio

"A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu" (trecho de Pedaço de Mim sobre a saudade)

"Assim como ele veio partiu não se sabe prá onde; e deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe. Esperando parada, pregada na pedra do porto; com seu único e velho vestido cada dia mais curto" (trecho de Minha História, no qual ele conta que a mulher - mãe - virou prostituta)

"Chorar sua vida vivida, em vão(...) Chorar o seu tempo vivido em, vão" (trecho de Ai, se eles me pegam agora, falando de arrependimento)

"Pelo cordão perdido, te recolher prá sempre, à escuridão do ventre, curuminha, de onde não deverias nunca ter saído" (esse trecho de Uma canção desnaturada, faz parte da Ópera do Malandro, momento em que a personagem Teresinha abandona a mãe para fugir com um mau caráter. A mãe, desapontada, diz isso para ela)

"O tempo passou na janela, só Carolina não viu" (Carolina fala de vida reprimida e mal vivida, de tristeza e arrependimento)

"Quero ficar no teu peito, feito tatuagem. Que é prá te dar coragem prá seguir viagem depois que a noite vem." (Tatuagem é um dos muitos exemplos em como Chico explorou com genialidade a alma feminina, assumindo o eu-lírico feminino)

"Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida, pra agradar meu coração. E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, ainda quis me aborrecer. Logo vou esquentar seu prato. Dou um beijo em seu retrato e abro os meus braços pra você" (Com açucar, com afeto novamente incorporando o eu-lírico feminino, da mulher apaixonada pelo marido boêmio)

"O amor não tem pressa ele pode esperar em silêncio, num fundo de armário, na posta-restante, milênios, milênios no ar. (...) Futuros amantes quiçá, se amarão sem saber, com o amor que eu um dia deixei prá você" (Futuros Amantes fala do amor incondicional, do amor verdadeiro que não acaba nem com o tempo, nem com a frustração de ser somente platônico, de existir somente na imaginação)

"Me dê a mão, a gente agora já não tinha medo. No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido" (João e Maria fala da inocência, da nostalgia de um tempo, da lembrança)

"Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro: chave, caderneta, terço e patuá. Um lenço e uma penca de documentos pra finalmente eu me identificar, olha aí. Olha aí, ai é o meu guri" (O meu guri é uma crônica. O eu-lírico feminino, dessa vez a mãe de um marginal que o defende com orgulho de mãe-coruja: insiste em não aceitar a realidade de que o seu filho é escravo do crime)

Apenas alguns excertos, que simbolizam uma parte ínfima da obra dele, mas que me tocam de alguma forma.
Para quem gosta e quer mais, sugiro o site: www.chicobuarque.com.br

quarta-feira, 5 de abril de 2006

Devastação

De repente, um vento forte tomou conta do lugar. Meus olhos fitaram o que a princípio parecia ser um rodamoinho, mas que ia tomando proporções demasiado exageradas, se transformando em um furacão. Tentava fugir, mas uma força estranha impedia. Corria para todos os lados a procura de uma saída, sem obter êxito.


Meu pensamento estava todo ocupado com tolices que não me permitiam racionalizar uma solução. Minhas mãos geladas, minhas pernas bambas, meu coração apertado, me faziam sentir um medo nunca antes experimentado. Seria o meu fim?


Movida por um impulso irracional fui em direção ao furacão, num ímpeto de enfrentá-lo. Arrebatada, fui arrancada do chão, expulsa da realidade sem chance de volta. Vivia agora mergulhada em fantasias...


Pisando em nuvens, percebi que toda aquela confusão, aquele cenário de devastação era interior, acontecia no meu coração: era amor.

terça-feira, 4 de abril de 2006

Uma simples homenagem

Por Maria Teresa Cruz

PORTA
TORTA
ARTERIA
AORTA
SE ENTORTA
MORTA FICA
DESENTORTA
ARTERIA E PORTA
ABORTA
ABERTA
PORTA
VITA
SE ENTORTA
PORTA E AORTA
CERTO QUE FICA MORTA
DESENTORTA
ARTERIA E PORTA

ROTA DA VIDA

(A poesia concretista é o que há de mais tocante, no sentido literal da palavra. Ela é simples e isso é fantástico. Vocês conseguiram visualizar a artéria aorta e a porta? Percebo uma semelhança incrível entre elas: tanto porta quanto aorta significam passagem. Pela porta passa gente - necessariamente viva - , logo passa vida. Pela artéria Aorta passa sangue, que carrega hemácias e leucócitos, necessários a vida. Viva Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Arnaldo Antunes!)

domingo, 2 de abril de 2006

A História se repete

Diálogo entre as obras “Ilusões Perdidas” de Honoré de Balzac e “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto

Uma narrativa ambientada na Paris pós-Revolução Francesa. A outra, no Rio de Janeiro, em um Brasil, ainda colônia, que assistia às primeiras décadas de República. A primeira remete a obra “Ilusões perdidas”, de Honoré de Balzac e a segunda, ao livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto. Há um ponto em comum: o eixo norteador no qual está inserido o personagem, inquieto e sonhador, movido por uma busca incessante. Inserido em uma realidade sem perspectivas, tanto Lucien Chardon, de Balzac, quanto Isaías Caminha, de Lima Barreto, personificam o inconformismo, a ambição, a decepção, o conformismo e a entrega.
Vindos do interior, Lucien – com suas poesias e seus originais românticos embaixo do braço, ávido por publica-los – e Isaías – procura resgatar a memória do pai, falecido, modelo de inteligência e fugir do estigma da ignorância de sua mãe – foram movidos pelo desejo de ser alguém na vida. Era em cidades grandes, como Rio de Janeiro e Paris, que havia terreno propício para construir uma vida de sucesso e reconhecimento. Era lá que as coisas aconteciam.
Ainda hoje, há nutrida a idéia de que a cidade grande dá oportunidades. Essa afirmativa dita, dessa forma, sem adendos, pode ser perigosa, até mesmo falaciosa. É inegável que a complexidade das grandes cidades seja terreno fértil para produção, principalmente quando se fala em jornalismo. A efervescência cultural é singular em grandes centros urbanos. Na mesma proporção, há um excedente de pessoas, sedentas por um lugar ao sol. Exige-se mais qualificação, aumenta a competitividade de maneira desleal e...onde estão as oportunidades? Esse é o jogo. Nesse sistema, os personagens vão ter que se amoldar.
Interessante notar como os personagens, mergulhados nesse mundo real, o percebem mais cruel e menos poético, e passam pelo processo de perda da inocência, da pureza que carregavam na essência, para dar lugar a ambição e ao desejo de projeção profissional. Assim, se entregam aos meandros do competitivo meio das relações de trabalho.
Decepções, como as recusas que recebeu Lucien ao tentar publicar uma de suas obras, e humilhações, como o fato de Isaías ser mulato num país de tradição escravista, vão construindo os destinos dos personagens. Hesitações os fazem, às vezes, parar para pensar em desistir, mas se mantêm firmes no intento.
Uma diferença na trajetória dos dois personagens merece ser apontada. Lucien, sempre nutriu a paixão pelas letras, queria ser literato e acreditou no jornalismo como caminho; percebeu, no entanto, o abismo existente entre a produção jornalística rentável e a literária. Isaías trazia um histórico de formação em humanidades, mas chegou a falar em medicina; acabou, por força das circunstâncias, trabalhando com as palavras.
Os acontecimentos vão conduzindo cada um dos personagens para um caminho de difícil regresso. Fazem concessões, trocam favores, conhecem o poder da influência e imersos nesse jogo de interesses, que não é exclusividade do jornalismo, mas da vida, percebem o quanto pode ser interessante transitar neles. Tudo tem dois lados, necessariamente sedutores.
Há expectativa em fazer um jornalismo mais livre, menos preso ao “modelão” do lead – que não busque apenas responder quem, o que, quando, como, onde, por que – e que, em última análise, pretende volver os olhos para os fatos e trazer o leitor à reflexão. É possível? Não se pode esquecer que a lógica capitalista move as relações sociais e o olhar do jornalista está imerso nesse contexto. E aí reside a crítica concebida pelos autores em cada livro: a “industrialização” do jornalismo, a informação como mero produto. Os personagens dos livros, cada um a seu modo, compreenderam isso. E entenderam como sonhos podem não passar de ilusões, de recordações.