sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Desvio

Todos os dias, ele dizia "Bom dia!". Ela, sempre muito sorridente, respondia prontamente. Pelo tom de voz, ele conseguia saber se ela estava triste, aborrecida ou feliz da vida. Ele a amava em segredo. Sabia quem eram seus amigos, seus gostos, seus horários e até mesmo a última compra parcelada que ela havia feito.
Ela era uma mulher sozinha, mas não solitária. Sempre estava cercada de gente. Tinha uma vida noturna agitada, sempre recebia amigos em jantares no seu apartamento. Todos os dias saía logo cedo e passava apressada por todo lugar, como que perdendo hora para um compromisso que nem havia marcado ainda.
Ela tinha urgência em viver. Ele, em contemplar.
Mas ela sentia falta de ter alguém que cuidasse dela, que a amasse, que dividisse momentos de delicada intimidade. Ele era o candidato. Mas isso era uma coisa só dele. Ela nunca saberia, por uma opção dele.
O brilho contemplativo se apagaria em um minuto se aquela devoção se fizesse pública.

Às vezes, ela descia para fumar um cigarro. Ele então se deleitava em companhia silenciosa. Cada tragada era tamanha fonte de prazer, que, por vezes, ele emitia algum grunhido. E ela, simpática, dizia: "que foi?" - e ria. E ele: "nada..." - num sussurro.

Um dia, chegou uma carta. Cheirava à perfume importado. Masculino. O remetente confirmava a suspeita: era um potencial adversário. Reconheceu o nome do rapaz, que já havia ido visitar a garota um ou duas vezes.

Não teve dúvidas: picou em mil pedaços e jogou fora.

Alguns dias depois, chegaram flores. E ele procedeu da mesma forma: jogou fora.

Mais alguns dias e o rapaz foi até o prédio. Perguntou pela jovem. Era ele quem estava na portaria aquele dia. Que sorte! E foi seco:

- Ela não mora mais aqui. Mudou-se essa semana.
- Sabe para onde ela foi?
- Não tenho a menor ideia.
- O sr. chegou a ver se ela recebeu uma carta e flores minhas?
- Sim. Eu é quem estava aqui. Ela não quis nem pegar. Jogou tudo fora.
- Sério?
- Sim.
- Vadia.
E o porteiro sussurrou:
- Trouxa!

E ela chegou, um pouco mais tarde e tudo estava ao normal. Afinal, nada demais tinha acontecido. A vida dela continuava assim, sem grandes acontecimentos. Ela estava decepcionada, mas não se deixava abater. Depois de uma semana sem notícias do rapaz, ela pensou: "Ah, laissez-aller, laissez-passer". No dia seguinte, ela saiu como todos os dias, respondeu ao bom dia, sorrindo. E esperando mais uma carta que nunca chegou, mais uma flor que nunca chegou, mais um amor que nunca chegou. O que restava era a adoração, fiel, mas que ela também nunca saberia existir.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Gases, menstruação e má digestão

Aos 7 anos

- Mamãe, tá doendo aqui - aponta para um ponto entre o estômago e o coração
- Ah, filha, sei lá. O que você fez? - indagou
- Nada, mãe.
- Devem ser gases...
- Não, mãe! Tá dando pontada aqui - apontou, insistente, para o peito
- Ai, meu Deus! Então vamos ao médico.
Começou a chorar:
- Tem médico de coração?
A mãe olhou, confusa:
- Filha, o que você tem?
- É que o Pedrinho, o Pedrinho...eu fiz um desenho pro Pedrinho, mas ele riu, amassou e jogou no lixo - disse aos prantos.
Comovida, a mãe abraçou a filha:
- Ah, minha filha! Os meninos são bobos mesmo. E o Pedrinho mais ainda, por não perceber a garota legal que você é. Vai passar.

Aos 14 anos

- Oi, mãe - entrou na cozinha cabisbaixa - nem vou almoçar hoje.
- O que foi, minha filha?
- Eu tô com muita dor aqui - e apontou a região entre o estômago e a barriga.
- Não vai ficar menstruada, filha?
- Não! - respondeu, colocando a mão no peito.
- Mas ta doendo aí onde você colocou a mão?
- Também...
- Ah, filha, mas aí são os seios...normal, estão crescendo, eles doem. Eu tive dores até os 16 - teorizou a mãe.
- Não, mãe! É o ar que falta. E aí dói aqui, aqui mais embaixo, aqui do lado...
- Acho melhor a gente procurar um médico.
A garota hesitou. Como a maior parte dos adolescentes, não gostava de ter essas intimidades com a mãe, mas acabou caindo no choro:
- É o Pedro, mãe. Acredita que a gente foi junto para aquela festa e ele nem olhou na minha cara hoje.
- Ah, filha, ele não deve ter visto - disse a mãe, tentando amenizar.
- Ele viu sim, mãe. E sabe por que não me cumprimentou? Porque tava andando de mãos dadas com outra garota. Eu quero morrer.
Com compaixão, a mãe disse:
- Ai, filha...os garotos são assim mesmo. Eles demoram mais para amadurecer do que as meninas. Isso é normal. Ele é que é bobo por não estar com uma garota legal como você. Vai passar.

Aos 28 anos

- Nossa, mãe. Tá difícil hoje...
- O que foi, minha filha?
- Nossa, com o coração apertado. Tá difícil de respirar.
- Comeu alguma coisa que não caiu bem?
- É, pode ser mesmo. Estou um pouco enjoada...
- Vixi, filha, quando eu fiquei grávida de você sentia isso... - disse a mãe, toda animada para ser avó.
A filha, com um tom de voz sério, cortou o barato da mãe:
- Eu não estou grávida.
- É, filha, então não sei...Você está precisando de alguma coisa?
- Eu queria o Pedrão de volta, mas isso ninguém pode fazer - e desabou no choro
- Ai, filha. Ainda esse cara?
- É, mãe. Ele não quis nem falar comigo. Disse que não quer me ver e que é melhor assim.
Pegou a cabeça da filha e colocou no colo, como quando era criança:
- Ah, minha filha! Os homens parecem meninos, às vezes. E o Pedrão mais ainda, por não perceber a mulher incrível que você é. Vai passar.

Conclusão: Gases, menstruação, má digestão e coração partido provocam os mesmos sintomas. E essas dores e os conselhos (verdadeiros, mas sempre protocolares) não mudam em tempo algum.