quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Desimplicância

- Você também pediu café?
- Pedi. Dscafeinado.
- Que graça tem? O café descafeinado é a negação do café, portanto não é café.
- Bah, não quero discutir com você, você é muito implicante. Vamos voltar a falar de trabalho...
- Pó pará aí! Eu, implicante? Baseado em que você diz isso?
- Em tudo oras bolas. Não sei se sou eu ou o resto do mundo, mas você sempre tem um comentário a fazer, uma opinião, uma carta na manga, entende?
- Não sou implicante, apenas tenho bom domínio da retórica.
- Você é cheia de graça. Queria saber como faço para deixá-la sem!
- Sem graça?
- ahã
- Sem graça eu não sei, mas sem paciência eu já estou.
- Você não consegue ficar brava comigo.
Pausa. Ela baixa a cabeça. Depois olha prá ele.
- Não mesmo, desgraça. Mas o lance de implicante é que eu não entendi.
- Ah, sei lá. Tipo, qual o problema em tomar um café descafeinado?
- Simplesmente é a coisa mais sem emoção do mundo. É como tomar leite desnatado, chocolate sem cacau...são coisas que não podem estar dissociadas, que fazem parte uma da outra, que não existem plenamente quando separados...
Parei ao notar que ele me olhava. Não mais cheia de graça olhei. E senti um horror lancinante. Horror ao perceber que estava presa para sempre àquele olhar.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Como não se comportar numa entrevista - parte 1

Final de ano. Para quem está com as mãos abanando é hora de virar franco atirador. Esse é meu caso. Me inscrevi em 238697 processos seletivos. Quando ligam em casa para agendar entrevista essas bobagens todas tenho que puxar na memória "ah, esse é o 3457° que eu me inscrevi". As vezes, o descarte pode acontecer na hora do agendamento, pois pode ter sido resultado de um momento desesperador e descontrolado. De sua parte, é claro.

O outro descarte é mais traumático. Mulheres de Recursos Humanos deveriam ser interditadas. Nada contra as mulheres, mas aos recursos que elas insistem em dizer que são humanos.

Guardo com carinhoso pavor algumas histórias. Reproduzirei fielmente os diálogos e farei comentários entre parênteses.

"- Vocês podem sentar-se. A entrevista será aqui.
- Aqui? (aí está o primeiro erro: como fazer uma entrevista em dupla, ou seja, eu e minha concorrente na frente da mulher do RH)
- Sim. (elas quase sempre são monossilábicas)
- Quem fala primeiro?
- Eu gostaria, pode ser? - pergunto"

Ambas concordam, a RH e minha concorrente. Aí começo a me apresentar, toda aquela cantilena, que não reproduzirei aqui.

"- E por que escolheu a nossa empresa? (putaqueopariu, que pergunta inútil! o que ela quer saber? se a gente acha a empresa bacana? é obvio que sim, senão não estaria perdendo o Vale a pena ver de novo prá ficar olhando prá cara de insatisfeita dela - isso é outro capítulo que será abordado mais prá frente: moças de RH tem cara de insatisfeitas, prá ser educada, é pré requisito para ser uma RH)"
Sem saída, me vejo obrigada a fazer algo que me enoja: pagar pau para a empresa, dizer que gosto de desafios e que acredito que o emprego vai me proporcionar isso. Ou seja, nesse ponto você finge que fala a verdade e a RH finge que acredita. Uma hipocrisia nojenta.

"- E você mora sozinha?
- Com uma garota, mas não é de programa - fazendo uma gracinha para quebrar aquele clima." (Sim, concordo que foi desnecessário, mas saiu e boa).
Minha concorrente riu, timidamente, mas riu. A RH se manteve gélida e inexpressiva (ah, essa é outra característica para ser uma RH bem sucedida). Não podia confessar que tinha achado graça, mas notei um ventinho no lado esquerdo do lábio superior, denunciando que continha o riso.
Ela me faz mais algumas perguntas inócuas e vira-se para a outra garota, para começar a segunda entrevista. O mesmo se repete. Eu fico olhando prá garota, enquanto ela responde as perguntas, e fico me perguntando que merda me passou pela cabeça para me sujeitar àquilo tudo. O que a pindaíba crônica não faz, não?
"- Uma merda... - opa, fui traída pelo inconsciente
- Desculpe? - me interpela
- Desculpe eu, tive um ato falho - aproveitei para demosntrar meu insignificante, porém válido, conhecimento em psicologia
- Isso não é ato falho, isso é falta de educação
Fiquei tão p da vida. Foi um tapa no estômago, porque soco já seria exagero. Me enchi de toda aquela encenação.
- É sua cara - tomei coragem
Minha concorrente arregalou os olhos. A RH, não preciso repetir, aumentou o tom de voz, mas os músculos da face não se movimentaram um milímetro. Tenho razões prá achar que usava botox.
- Não estou entendendo...o que tem minha cara?
- Uma merda, entendeu? Poderia ter uma merda falando com a gente no lugar da sua cara.
- O quê? - indignada
A concorrente ficou vermelha e com as mãos na boca conteve uma risada prestes a explodir.
Continuei:
- Você não fala se tá gostando do que a gente fala ou não, não se manifesta, não interage, nem se permite rir quando acha graça de alguma coisa...é séria, inerte, como uma merda.
Levantei e saí. Acho que ela iria me dizer impropérios, mas não deu tempo.
Perdi a vaga, mas saí de lá tão leve, tão bem, que acredito ter valido a pena. Foi o equivalente a uma sessão de terapia.

Ainda fui cumprimentada pela concorrente. Vê se não tenho razão...

Homenagem as queridas amigas psicólogas (e psicóticas!). Amo vocês! - Má, Lia, Lê e Mari. Sou psico de coração, sabem disso.

terça-feira, 21 de novembro de 2006

Dia de amanhã

- Lembra que dia vai ser amanhã?
- Dia 22...
- Não.
- Quarta-feira?
- tsc, tsc...
- hum...aniversário da sua mãe?
- Não, não...
- Já sei, já sei...vai sair sua promoção no trabalho..
- Não!
- Desisto.
Desanimado:
- Nosso aniversário de namoro.
Com muita vergonha:
- Desculpe. Essas coisas não são tão importantes, o mais importante é que estamos juntos.
- É, talvez você tenha razão.
Não conseguiu esconder a decepção. Toda mulher lembraria uma data como essas. Ela não. Por isso dá certo. Eles formam o contraponto. E se equilibram.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

As Leis de Newton

- O peso de um corpo, também chamado de força-peso, representado por P, é calculado multiplicando a massa corpórea, que o senso comum chama de peso, pela velocidade da gravidade, representada por g.
Virou de costas para a sala e esquematizou por escrito na lousa tudo o que tinha acabado de explicar.
Continuou a aula.
- Se alguém pular do sétimo andar da janela de um prédio, como calcularemos a velocidade da queda, excluindo o atrito do corpo com o ar?
Silêncio. Sala cheia. Ninguém se manifestou. Física sempre foi matéria complexa. Somente alguns eram capazes de compreender todas as suas leis e aplicações.
- Ei, pessoal, vamos lá! Vocês tem que revisar a matéria na casa de vocês, porque senão eu vou ficar aqui falando sozinha...
Apesar da dificuldade que a disciplina representava para os alunos, a professora era muito bem quista por todos. Uma das alunas, sentada na primeira carteira da fileira do meio, arriscou alguns palpites:
- Acho que nesse caso, além da força peso, teremos que considerar a altura de onde a pessoa saltou...
- Isso mesmo. Está indo pelo caminho certo. Como disse nossa colega, nesse caso a velocidade é também influenciada pela altura de onde a pessoa cai e evidentemente pela sua força-peso - volta-se para a lousa e passa a transliterar o que raciocina - Dessa forma usamos o intervalo de espaço, representado por delta S, sobre o intervalo de tempo em que o corpo demora para cair, representado por delta t. Ei pessoal, já dá prá ter até uma idéia se a pessoa morreu ou não...
Os alunos riram. A professora riu amarelo. O sinal tocou indicando que aula terminara.
- Até a semana que vem para quem não vier no plantão de dúvidas que darei amanhã a tarde.
Mexeu os dedos da mão direita em sinal de despedida e desapareceu pela porta da sala.

Foi até a sua casa. Almoçou, descansou e viu um pouco de TV. Por volta das seis da tarde, estava limpando a janela do seu quarto e olhou para baixo. Morava no sétimo andar de um prédio no centro da cidade. Sua janela dava para o playground. Muitas crianças brincavam àquela hora, depois de terem ficado na escolinha o dia todo. Olhos pensativos. Lousa. Cálculos. Janela. Chão. Ficou calculando a velocidade com que cairia de pulasse. Lousa. Alunos. Aula. Vida. Colocou o pé direito para fora da janela e obcecada por materializar uma teoria de anos, pulou.

Caiu sobre a gangorra e, por sorte, não atingiu nenhuma das crianças, que olharam assustadas para o que tinha acabado de acontecer. Algumas babás, em vão, tentaram tapar os olhos dos pequenos. Caiu em pé. Seu corpo foi dividido em dois pelas ferragens.

Newton a tinha desatinado.

terça-feira, 3 de outubro de 2006

bang bang

Hoje percebi o quão importante foi o plebiscito sobre o desarmamento. O resultado não foi o esperado - compreensível, já que estamos falando de um país que por um triz não reelegeu Lula, aquele que não quer ver -, mas é o que foi decidido e ponto final. A primeira vista, nenhuma mudança factual para o cidadão comum. Mas, tenho dito: graças a Deus não tenho uma arma.
No metrô, voltando da Lapa, tive impetos de metralhar umas várias pessoas. Pelo simples fato de estourar os seus miolos. E só. Não pelo desejo de matar, mas de aliviar. Estava segurando na barra do metrô e fiquei olhando toda aquela gente se amontoando num espaço mínimo. Tive pena e depois nojo e vontade de metralhar todos que estavam a minha volta. Simplesmente mirar na testa e pou...acertei. Que maravilhosa sensação.
Você é feio, você masca o chiclé de um jeito que eu não gosto, você come de boca aberta...bla´blá bla, motivos não faltarão. Bang Bang você morreu!

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Esperar prá ver

"Presidente que foge de debate mostra que prefere ficar escondido atrás de publicidade paga com dinheiro do povo em vez de ir para o ringue lutar em igualdade de condições ", frase dita em 1998 pelo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que agora não deseja participar dos debates .

Irônico não? Olha só como o mundo é uma bola mesmo...E olha como a palavra proferida, quando testemunha, tem o efeito de uma bomba.

A oposição vira situação. Essa frase é obvia se imaginarmos que todo partido empossado no governo, desconsiderando ideologias e discursos, torna-se automaticamente situação. Contudo, não é fato consumado um PT cheio de glórias e retóricas embebidas de conceitos como democracia, liberdade e ética, entrar de cabeça no saco de farinha que sempre criticou. A decisão só acontece no segundo turno, daqui exatos quatro domingos. Graças a Deus: o eleitor vai ter tempo de respirar e botar a massa encefálica para funcionar. Durante a campanha do 1° turno, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez o que sempre criticou: fugiu do debate, articulação interessante e bastante proveitosa para o eleitor, que pode saber mais das propostas de governo de cada um dos presidenciáveis. Segundo informações oficiais, a ausência nos debates foi uma questão estratégica. Qual será a conduta do barbudo durante a campanha do 2° turno?

É esperar pra ver.

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Lula, Fidel e outras cositas más

Com a proximidade das eleições e o aumento considerável do meu ódio certo candidato a presidência, coloco um texto que escrevi no dis 29 de agosto e que fora publicado no blog Pronto para Impressão

Com a saúde debilitada de Fidel Castro é tempo de volvermos nossos olhares para Cuba e fazermos algumas reflexões. A burocratização das estruturas de sistemas de governo socialistas, como é o caso do referido país, servem justamente para conter a prática do patrimonialismo. Ou ainda, conter os ímpetos de manifestação dos próprios desejos quando se dirige um país. O que temos em Cuba é um socialismo e uma ditadura. O diatador Fidel, aprumado em uma estrutura socialista. Um líder burocrático, com claras características patrimoniais. Um líder de um país com uma educação exemplar e uma reforma agrária bem sucedida (que diga-se de passagem é uma articulação extremamente capitalista) e a pobreza igualitariamente dividida. A liberdade de expressão é inexistente e não podemos falar em imprensa articulada em Cuba. Mas como ficou provado no plebiscito feito no início deste século, o governo Castrista tem um elemento que o mantém vivo e forte. Um elemento que o filósofo Gramsci, no início do século passado, batizaria como legitimidade. É o que mantém o Estado em pé. Afinal, o que Cuba é? Vivem regidos pela burocracia ou pelo patrimonialismo?

Legitimidade é a palavra-chave para entendermos o cenário político brasileiro. Lula é um ridículo. Mas é um líder amparado pelo consenso de quem o elege. E "quem" aqui é no sentido de grupo social. Há pouco mais de um mês das Eleições 2006, Lula passeia com seu ar pavonado de vencedor. Um militante que almejou o socialismo, chegou ao governo quando abandonou o sonho e hoje é um líder, em absoluto, patrimonial. Um monarca absolutista. Uma cria de ditador. Pode indagá-lo caro leitor, se seu desejo mais íntimo não seria o poder vitalício? Ele responderá que sim, pode ter certeza. O Congresso nunca foi tão descaradamente patrimonial quanto no Governo do petista. Nunca houve tanta camaradagem nas escolhas de Lula para ocupar os ministérios. E outros casos, que nem sonhamos saber. E nem nunca saberemos.

Dá até prá compreender. Gramsci é o teórico que norteou a formação ideológica do Partido dos Trabalhadores, nos idos dos anos 80. O que esqueceram de falar para o presidente é que a legitimidade a qual Gramsci se referia era num contexto socialista, não em um contexto no qual esta dependeria de conchavos e de ideologias na lata do lixo.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Um dia dá certo

Embora o sol brilhasse esplêndido lá fora, dentro de mim estava escuro e sombrio. É muito complicado lidar com um inimigo invisível. Você olha para o lado e não há nada. Você pára prá pensar e nada povoa a mente, porque simplesmente o problema não está fora, mas dentro.
Tive pensamentos ruins e me culpei por isso. Não pura e simplesmente por tê-los sentido, mas por tê-los aceito como saída.
As razões para deixar de viver, via de regra, são muito egoístas. Me senti fraca por pensar na morte. Uma filha da puta, na verdade. Como posso pensar em deixar de viver momentos tão bons como os que vivo?

Tenho medo do que penso, às vezes. A nossa mente é uma máquina e pode acontecer de ter uma reação na esperada, que não estava explícita no manual de instruções.

Hoje peguei a caneta bic com a qual estava fazendo palavras-cruzadas e enfiei na garganta. Não sei que merda me passou pela cabeça, mas no minuto seguinte me senti tão tola que tive medo de olhar para o lado e encontrar alguém me fitando com ar de reprovação total.

Sangrou muito e está doendo ainda. O médico disse que por sorte não acertei a jugular. Poderia ter morrido. Ele disse que com essas historinhas um dia eu acabo acertando e não vai ter volta. Pensei que é melhor não pagar prá ver.

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

O amor como máscara

Amores impossíveis com diferença de dois séculos na concepção de um e de outro. Em ambas histórias, os protagonistas sacrificam seus privilégios e regalias em nome de um amor, que ao menos se prova, para vida toda. A filmagem do longa "Tristão e Isolda" (2006), por Kevin Reynolds, baseado em uma história que data do século XII, assinada pelo francês Béroul - não há registros autorais da lenda, o que se sabe é que veio a público na Idade Média - faz com que a memória traga a tona a história Shakespeareana dos amantes eternos "Romeu e Julieta".
Além de arrancarem suspiros apaixonados até mesmo dos mais insensíveis espectadores, os filmes guardam outra característica que os aproxima. O amor cortês - em que há uma testemunha ocular, que em algum momento da trama torna-se pivô de uma decisão - é usado como pretexto para falar de um nefasto hábito da condição do ser humano: a mentira.
Julieta crava um punhal no peito - na versão original; na contemporânea, se mata com um tiro na cabeça - porque não suporta a idéia de que seu plano secreto não chegou a conhecimento de Romeu. Isolda é obrigada a casar-se com o Senhor de seu grande amor, por ocultar de Tristão sua verdadeira identidade.
Há os que comumente dizem que foi o destino, obra do acaso ou algo que o valha. Não acredito. Temos inteira responsabilidade pelos nossos atos. Em ambos os casos, as protagonistas foram induzidas a mentir: Isolda foi persuadida pela ama a mentir o nome, por essa achar que seria perigoso revelar sua verdadeira identidade; Julieta foi convencida pelo padre, que o simulacro de sua morte, sem que ninguém exceto ele e Romeu soubessem, seria a única saída para um final feliz.
Pode parecer bobeira, mas imaginem como teria sido conduzida a história se os personagens citados acima não existissem e não tivessem realizado influência efetiva no direito ao livre arbítrio das protagonistas?
A idéia não é levantar bandeira, tampouco encontrar culpados. O fato é que o amor, colocado em primeiro plano nas histórias, é, em essência, mote para discutir a questão da mentira, do engano, nos dois casos, decorrentes de opções conscientes dos personagens.

quinta-feira, 20 de julho de 2006

Uma festa qualquer

Uma música embalava a alma. Uma magia no ar. Algo diferente aconteceria na vida daquele reles mortal. Arrumava-se de um jeito diferente para ir àquela festa. Não sabia o por quê, mas tinha uma certeza: aquela não seria mais uma das muitas festas que iria, despretensioso. O destino reservava para aquela noite, cadeira cativa na platéia da felicidade. Encontraria um certo alguém? O grande amor da sua vida? Como sabê-lo?
Do outro lado da cidade, se arrumava para a mesma festa, aquela que mudaria os rumos da sua existência. A única capaz de controverter a técnica milenar da quiromancia que acusava nas mãos dele, infelicidade eterna no amor. A linha do amor das mãos dela era curta, igualmente confusa, apagada como a dele. Era incrível, mas ela também estava embalada por uma sensação ímpar de prazer iminente. Sentia no ar, um toque especial de desejo a ser concretizado, tão logo.
Chegaram à festa. Tinha gente para todos os lados. Muita. Muita gente! Para dar uma volta perimetral no salão, eram necessários uns 65 minutos. Ou mais. Quem sabe? Dependeria da velocidade média dos passos de cada um...
Ele pensava como seria ela. Ela procurava nos rostos do salão, uma idealizada forma de amor. Predestinados a viver um grande amor! Quem saberia? Exaustivamente, procuravam, não se sabia ao certo a que, ou melhor, a quem, mas procuravam o que nem tinham perdido ainda. Claro, já que nem tinham achado!
Jamais desistiriam. Persistentes, encararam muitos rostos, fitaram muitos corpos, fotografaram muitas retinas, tocaram em muitas mãos. Muita gente na festa. Não se encontraram. Era melhor começar a dar crédito a quiromancia.

terça-feira, 27 de junho de 2006

Perfil - Na Berlinda

Após grande parte dos jogos do Brasil, durante a Copa do Mundo, quem vai entrar ao vivo com o programa Gazeta Esportiva, usa saia, batom vermelho e cabelos louros na altura dos ombros. Michele Gianella, aos 26 anos, é apresentadora do programa de esportes há cinco. Jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero, começou como repórter no programa de variedades Mulheres, da Rede Gazeta, fez mais de 80 reportagens, quando enfim foi convidada para integrar o núcleo de esportes da emissora. “Fui convidada, porque sou uma cria da casa”. Participa do programa Mesa Redonda, recebendo perguntas por e-mail, ao lado de Flávio Prado, Chico Lang, Celso Cardoso e Osmar Garrafa, e tem um quadro no programa Disparada do Esporte, transmitido pela rádio Gazeta AM, 890 mhz, no qual fala sobre os bastidores do mundo esportivo, às terças e sextas-feiras.

“No começo foi um pouco difícil, porque são muitos jogadores, muitos campeonatos”. Além disso, Michele vinha de um programa feminino de variedades. “Muita gente virava pra mim e falava: ‘você é modelo?’ e eu fazia questão de dizer ‘não, sou jornalista’. A beleza ajuda por um lado, mas por outro a cobrança em cima do seu trabalho é maior, você tem que provar todo dia que você é capaz, que é responsável e que sabe o que está fazendo”. Para driblar as dificuldades, criou uma estratégia que considera infalível. “Eu tenho um caderno de estudos, onde eu anoto os campeonatos, os nomes dos jogadores e algumas informações de cada um deles. Hoje já tô tirando de letra”, comemora.

Única mulher da equipe, Michele considera tanto o ambiente de trabalho como a relação com os colegas ideal. “Não existe isso de preconceito. Eu participo de todas as reuniões, eles me ouvem e todo mundo discute junto. É bem aquela coisa de equipe e acho que por isso os programas têm dado um resultado tão bacana em termos de ibope”, ressalta.
Michele diz que a convicção de ter ultrapassado todas as barreiras veio com o convite para integrar o Mesa Redonda. “É uma jaula de leões. Se você for um cordeirinho é devorado, seja pelos convidados, seja pelos comentaristas. Precisa ter o conhecimento, a postura, porque é um programa ao vivo, onde tudo pode acontecer”, explica a jovem jornalista. Após ter sido enfrentada pelo goleiro Rogério Ceni – quando chamou o São Paulo de amarelão no ar – e peitado o técnico Leão – que a acusou de usar a voz de um internauta para fazer uma pergunta delicada –, dá a dica de sobrevivência. “Tem que ser firme, porque senão eles acham que você só vai ficar adulando e não é isso”.

sexta-feira, 9 de junho de 2006

A sorte está lançada

- Você vai morrer
- Vou nada! Quem vai é você...
- O menos ágil vai morrer
- Ou o menos rápido
- Ou aquele que tiver mais sorte
Dois amigos apostaram o resultado da final do Campeonato Brasileiro daquele ano. Deu empate. Decidiram levar a história as últimas conseqüências: resolver na roleta russa.
Quem estava no centro das atenções era uma pistola cromada calibre 38. A coronha era de madeira. Cerejeira.
Um escolheu pinga prá tomar coragem. O outro optou por tequila, em respeito as raizes mexicanas do pai.
Na cartucheira, seis espaços que logo seriam ocupados por duas balas devidamente selecionadas.
Gira a roleta. A sorte está lançada. Já há um escolhido para começar o duelo.
Segura a arma com força, pressionando-a sobre a mesa. Puxa-a e posiciona-a próximo ao ouvido esquerdo.
- O cano está frio
- É claro, isso é ferro, seu burro
As mãos, suando em bica gelada, se espremem na arma, com o objetivo de não deixá-la escorregar. Não há muito tempo para pensar, quando o indicador desliza sobre o gatilho, levando-o para trás.
Apenas um clique, indica que o gatilho foi acionado, porém não havia bala. Livre, comemora a passagem. Um suspiro longo e aliviado.
Coloca a arma sobre a mesa e gira. O cano fica entre os dois. Haverá um tira-teima. É a vez do outro. O rito de nervosismo que antecede a proximidade óbvia com a iminência da morte se repete. As mãos roxas seguram a arma, com o suor gelado do oponente e fica difícil saber o que é mais frio naquele momento: o medo ou a matéria.
- Vamos acabar logo com isso.
Num repente, segura a arma sem hesitar e aperta o gatilho, exigindo um certo esforço dos seus dedos que àquele momento já tinham as articulações comprometidas. Novamente um barulho de atrito do ferro indica que a roleta teria muito para rodar ainda.
Nova rodada. O primeiro cumpre novamente o ritual. Dessa aponta para o ouvido direito. Um estrondo. Silêncio. Mãos na boca. Sangue na parede. "Eu disse a ele que o lado esquerdo dava sorte".
Atordoado pela cena e nauseado pelo cheiro de pólvora, pensou que alí ainda restava uma bala para ele. No empate não há vencedores e perdedores. É uma situação onde todos ficam empareados.
Não pensou muito. Girou o pente do revolver e colocou o cano no céu da boca. Estrondo. Silêncio eterno.
O rádio, baixinho, sintonizado na 97.6 mhz AM informa o cancelamento da partida final do Campeonato Brasileiro por suspeita de corrupção da arbitragem. O locutor conta aos ouvintes que ainda não está decidido o dia para um novo jogo.

quarta-feira, 31 de maio de 2006

Ela é uma super mulher

Clima de Copa do Mundo, nos próximos dias vou publicar perfis que de mulheres notáveis no cenário esportivo da imprensa brasileira. O primeiro é da Soninha Francine. Comentem...

Todos os dias, ela chega aos estúdios da ESPN numa Vespa, vestindo calça jeans, uma mochila amarela nas costas e tênis necessariamente confortáveis nos pés. Maquiagem tem que ser leve e só para gravar. “Maquiagem carregada, me deixa super incomodada. Fazer um programa de esporte com um bocão não tem o menor cabimento”. Aos 38 anos, Soninha divide o pouco tempo que tem entre a Câmara dos Vereadores, as três filhas – Rachel, 22, e Julia, 9, que moram com ela, e Sarah, 18, que mora com o pai – e o programa esportivo Bate-Bola, exibido pelo canal pago ESPN – Brasil e o caderno de esportes do jornal Folha de S. Paulo.
Formada em Cinema pela USP, Soninha começou como VJ da MTV, emissora na qual passou dez anos de sua vida. De lá foi para a Cultura apresentar um programa que reuniria música, teatro, futebol, política e meio ambiente. “Era o que eu queria: um programa diário, ao vivo, com todas essas coisas, pra mim uma combinação deliciosa”. Na época foi envolvida em uma polêmica com maconha e demitida da TV Cultura, mas já estava na ESPN que teve uma posição diferente da qual ela se recorda muito bem. “O Trajano me chamou e falou ‘olha a gente recebeu uma pilha de e-mails nos elogiando por não ter te mandado embora e outra dizendo que iam cancelar a assinatura, porque esporte é saúde e não poderia ter uma drogada na programação’. Aí ele apontou para a segunda pilha e disse ‘esses aqui, se quiserem, vão ter que cancelar a assinatura’”.
Apesar de o ambiente do futebol ter predominância masculina, Soninha acredita que a questão do preconceito está quase superada. “Eu não vou dizer que eu nunca tive problemas com colegas no ar. Nunca teve nada muito descarado, mas já rolou de estar numa mesa e tomar uma cortada. Se um colega dissesse a mesma coisa, talvez não causasse uma reação tão ríspida”.
Com mais de um ano de mandato como vereadora pelo PT-SP, Soninha afirma que não há comparação entre os problemas que enfrentou no futebol e na política. “A política é mais difícil que qualquer coisa. Estou enfrentando problemas, mas não é por ser mulher. É mais uma questão de inflexibilidade. Depende do que você aceita abrir mão pra fazer com que o negócio aconteça”.
Ansiosa com a expectativa de pela primeira vez cobrir uma Copa do Mundo, aponta que Parreira acertou ao convocar Rogério Ceni e deve repensar a idéia de fazer os treinos abertos. “Sempre treinar aos olhos do público é muito complicado. O treino é uma hora onde você deve ter sossego”. Soninha embarca na quinta-feira para a Alemanha e dá a dica para o sucesso da seleção. “Saber a hora de desobedecer. O técnico tem a obrigação de mandar e o jogador de obedecer, mas tem que ter a presença de espírito para o imprevisto. É isso que faz a diferença na hora”.

quarta-feira, 17 de maio de 2006

O aniversário que não foi

Belinha ficou a semana inteira esperando a sexta-feira chegar. Era o dia de seu aniversário. Começaria a completar mais uma vez a mão. Ao mesmo tempo que era muito legal fazer aniversário, a idéia de que passaria a ter vinte e um anos a amendontrava um pouco. Os mais velhos diziam que depois dos vinte, o tempo passaria tão rápido que quando ela parasse para se dar conta, já estaria com os cabelos brancos e algumas rugas no rosto.
Não dormiu bem na véspera de seu aniversário. Confusa, não sabia dizer se era de ansiedade ou por conta da série de pesadelos que a atormentaram a noite toda. Sonhou que era como era: jovem, a pele bonita e sadia, e ao se olhar no espelho, viu no reflexo, uma velha caquética, com a pele cheia de marcas inexoravelmente deixadas pelo tempo que muito velozmente passou. Inconformada, ao se levantar da cama na manhã de sexta-feira, pensou que não queria mais crescer. A bem da verdade era que não queria mudar de idade. Imaginou que dali algumas horas deixariam até mesmo de chamá-la de Belinha. Ela seria Isabella, a anciã.
Lavou o rosto para espantar o sono e desceu as escadas do sobrado que morava desde a infância para o café-da-manhã. Sua mãe estava assistindo a um programa de receitas fáceis para o dia-a-dia da mulher moderna. Nem notou quando a filha chegou.
- Manhê! Uhu...eu estou aqui...
- Nossa filha, me desculpe, estava distraída.
Deu a volta na mesa, aproximou-se de Belinha e deu-lhe um beijo na testa. Não disse nada, apenas cumprimentou-a como de hábito. Belinha estranhou:
- Não está se esquecendo de nada?
A mãe ficou pensando, pensando:
- Não.
- Mãe, hoje é meu aniversário.
Num riso incontido:
- Não é não minha filha, você está se confundindo.
- Você acha que eu erraria o data do meu próprio nascimento?
- Ai ai, acho que anda trabalhando demais...Por que não pede uma folga ao seu chefe?
Belinha ficou sem-graça. Desenchavida, tomou o café com leite num gole só e saiu.
Na faculdade, ninguém se lembrou do seu aniversário, nem mesmo a melhor amiga. Todos diziam que ela havia enlouquecido e riam dela. Mas se perguntasse que dia era então seu aniversário, não recebia resposta alguma. Como poderia acontecer algo daquele tipo?
A esperança de provar sua sanidade era o pessoal do trabalho. Cruzando os dedos, entrou na sala, a espera de um abraço de parabéns. Nada aconteceu. Os colegas mais próximos deram um boa tarde comum e alguns até arriscaram um abraço, por estarem de bom humor. Ninguém se lembrara do seu aniversário.
Perturbada, começou a pensar de que forma provaria que não estava sendo vítima de um surto psicótico. Abriu a carteira e pegou o RG. Seria a prova concreta e cabal de que nascera naquele dia, há vinte e um anos, a partir daquele momento. Para sua surpresa e pavor, a data estava borrada. Não havia dia, nem mesmo, tampouco ano de registro do dia que veio ao mundo.
Voltou para a casa e pediu a mãe o registro de nascimento.
- Isabella, o seu registro ficou em chamas no incêndio da antiga casa. Você não se lembra, porque ainda era um bebê de alguns meses.
Nunca ouvira a mãe chamando-a pelo nome de batismo. Isso a perturbou um bocado. Pensava ser vítima de alguma teoria da conspiração. Estava tão agitada, que sua mãe percebeu:
- O que foi, filha?
- Mãe, se meu aniversário não é hoje, quando é?
- Já foi. Você escolheu isso.
Belinha lembrou da noite anterior, de tudo que havia sonhado, mas não entendeu. O primeiro passo para receber votos de um feliz aniversário é estar plenamente satisfeito com a idade. Todas as épocas da vida têm dores e delícias. Tem que saber dosar. Só compreenderia, com o passar dos anos, que a vida estava passando só ela não.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

O peso da vida

Na varanda da casa, numa quarta-feira qualquer.
- O cemitério tem uma coisa bonita, não sei. É algo que soa quase como uma poesia, uma bela música, não sei.
- Que idéia é essa?
- Nada não, fico só pensando, sei lá. Toda vez que vou a um cemitério, fico passando por entre as túmulos, olhando as fotos, os nomes, a data de nascimento e de morte, aí calculo a idade da pessoa e fico me perguntando: quem era, em vida? Você não pensa essas coisas?
- Não! De jeito nenhum. Só vou a esses lugares quando tem velório, mas faço as honras e me mando em seguida. A proximidade com a morte me dá arrepios - passando as mãos nos braços, num instinto de auto-proteção.
- Não é a morte, são apenas pessoas mortas. Um dia foram como nós e quem sabe conversaram numa quarta-feira, na varanda de suas casas.
- Você me dá medo, as vezes...
- Quando me deparo com aquelas tumbas onde não há foto, fico pensando se, de repente a pessoa era feia demais ou se não houve quem se preocupasse com isso.
- Há há há, essa é boa. Quem se preocupa com isso? Que importa colocar uma foto do morto, se...
Interrompendo:
- É para eternizar o momento entende?!? Em alguma fase da existência da humanidade, em algum lugar, esse alguém teve importância para outro. Não colocar uma foto é enterrar o registro cabal de que aquela pessoa realmente existiu. Não permitir que a vejamos é demasiado cruel! Nunca poderemos saber quem é.
- Você anda estranha...
- E os túmulos de famílias, então. Na Lapa há vários deles. Geralmente são de granito escuro, preto ou marrom. Fico muito curiosa quando leio "Família Guedes da Fonseca". Quais membros já ocuparam o lugar previamente reservado? Quais ainda restam?
- Ai, meu Deus do Céu...Que fixação!
- Não é fixação, é encantamento. Gosto de olhar os túmulos e ficar imaginando como foi aquela pessoa, como terminou sua vida. Será que era boa? Será que era rica ou pobre? Morreu de desastre ou por não agüentar mais o peso da vida?
Silêncio.
- O que mais penso é se era sozinha no mundo ou deixou saudades.
- Esse lance de gostar de cemitério e talz, tá parecendo coisa de gótico - num riso de escárnio
Inebriada pela emoção do devaneio:
- Será que quando eu for enterrada, alguém vai passar pelo meu túmulo e se perguntar quem era eu, afinal?
Puxando o braço da garota, na ânsia de trazê-la de volta a realidade, o irmão diz:
- A morte de mamãe deve ter te perturbado um bocado...
- Muito pelo contrário. Não me preocupa, porque todo mundo sabe o que mamãe foi em vida. Todos sabem que foi boa mãe, generosa, fiel, amistosa, inteligente e tudo o mais. O que me preocupa é ser injusta sabe?!? Nessas de ficar imaginando, corre-se o risco de fazer mau juízo de alguém que já morreu e nem pode se defender mais.
- Por isso é melhor não pensar em mais nada!
- Não é mais possível. Esses pensamentos povoam a minha mente mesmo antes de mamãe partir dessa para melhor.
- É bobagem! Temos que retomar a nossa vida. Só temos um ao outro agora.
- Não sei o que vai acontecer, mas tive um sonho a noite passada.
Numa gargalhada contida:
- Não era de cemitério, né?
- Não, era de vida. E de morte. Era você quem olhava nos meus olhos e dizia que seguiria só. Que havia um lugar lindo prá mim, cheio de poesia para eu cantar, porém, sem a sua companhia.
Os olhos do irmão, arregalados, se encheram de lágrimas, mas não havia mais tempo. Compreendeu que para um destinava a morte e para o outro sobrava a vida.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Trecho de um reencontro

E quando retornei, incontroláveis lágrimas denunciavam a decepção que a visita proporcionava. E não era choro comum de tristeza. Era arrependimento convertido em desespero. Era choro de compaixão.
Ela estava parada, com uma das mãos na cintura e a outra no batente da porta. Aquilo era suficiente desleixo para que eu percebesse que muita coisa havia mudado. Saia rota, cabelos desgrenhados, olhos apagados... Algumas rugas que denunciavam senão os anos de sofrimento aqueles que marcaram uma espera infinita.
Eu cá estava atônito. Inconformado com a crueldade dos desencontros que a vida teima em colocar em nossos caminhos.
Haveria guardado em nossos corações talvez um sentimento que nem o tempo conseguira modificar? Eu a amava mais que tudo! Ainda que muito tempo se passara, parecera que tivera sido agora a pouco. Ela ainda me amaria?
Num ímpeto de reviver aquele amor eu caminhei em sua direção de braços abertos.
Ela sorriu e também me recebeu em seus braços. E o que senti foi uma vaga saudade!

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Uma viagem ao inferno

Uma reconstrução do horror causado pela bomba atômica. Um retorno, 40 anos depois do episódio, resgata a identidade de alguns sobreviventes. Um livro histórico e de narrativa literária, é compreensível “Hiroshima” ser considerado um dos mais importantes livro-reportagem do século XX.
O autor John Hersey deixa transparecer a posição favorável ao “new journalism” e dá uma aula de como fazer esse jornalismo mais emocional e literário, e menos técnico, sem, evidentemente, esquecer da ética e da importância da apuração idônea na produção jornalística.
Por que o livro é uma referência? Primeiro pelo caráter de projeto que ele adquiriu: foi uma reportagem que o perseguiu e certamente o marcou para o resto da vida. Segundo, porque subverte a ordem das coisas, que se convencionou chamar de correta quando se trabalha a informação. Mostra, portanto, que a equação não se fecha: há muitas possibilidades de se dizer algo há alguém, mesclando objetividade jornalística com a subjetividade do ser humano.
Não se atém a teorias, a especulações, a juízo de valor: simplesmente expõe os fatos e os descreve. Como quem teve contato direto e conseqüente envolvimento com aqueles que viveram na pele, os dias de tensão antes e depois do lançamento da bomba atômica, que punha fim a Segunda Guerra Mundial, o seu texto acaba adquirindo um caráter bastante emocional, o que o torna interessante. Por esse motivo, Hersey obtém sucesso ao narrar o inenarrável.
Seu ponto de partida são seis vidas, todas habitantes de Hiroshima, contudo, com trajetórias distintas e bem particulares. O curioso, é que, ao penetrar na vida de cada um desses personagens da vida real, Hersey mantém um afastamento da própria narrativa. A partir da caracterização dos tipos e costumes de cada um, percebe que os personagens contarão a história. A ele, cabe apenas a tarefa de pô-la no papel.
Descrição apurada, construção textual que permite o acesso irrestrito e de fácil compreensão. O fato de apresentar os personagens, esmiuçar suas vidas a fundo, cria a empatia com o leitor, para que esse, a cada página virada, deseje não parar. Essa é a chave do livro: as páginas do livro passam diante dos olhos como filme e emocionam, pois nos transportam, ainda que seja um pouquinho, para um genocídio sem precedentes, deferido por um dúbio ser chamado humano, que se mostra tão cruel, egoísta e, paradoxalmente, tão solidário.

Resenha do livro Hiroshima, de John Hersey

sábado, 29 de abril de 2006

Pequeno diálogo amoroso

- Ouvi dizer que a gente daria certo...
- Quem disse isso?
- Ah, eu ouvi!
- Onde?
Esquiva:
- Por aí...
Um sorriso amarelo nos quatro cantos das bocas:
- Um passarinho da cor do amor!
- Qual é a cor do amor?
- Depende.
- Do quê?
- Do dia. Hoje ela está vermelha...
Ele vestia uma camiseta vermelha e jeans.
- ...e tem um toque tipo jeans também, sabe?!
- Sei. Mas que importa isso tudo?
- Importa que está escrito em algum lugar, e esse pássaro leu, e veio voando me contar.
- Você está dizendo que está predestinado?
- Se você acha isso...
- Não acredito nessas coisas. É tudo bobagem!
- O amor é bobagem?
- Então quer dizer que você me ama?
- ...
- Que bom! Você facilitou as coisas!

segunda-feira, 24 de abril de 2006

Os dois lados da moeda

Naquele dia eu saí bem cedo com minha mãe para irmos até a cartomante. Fomos resolver os nossos destinos tão complicados e que de tão diferentes se cruzaram.
Papai a deixou, grávida, e agora ela estava vivendo feliz um novo amor. Estava amando de novo. Eu estava atrapalhando. Mas mamãe não tinha coragem de se livrar do empecilho, porque era uma mulher, ainda que na imaturidade de seus dezessete anos, muito responsável. Ela estava perdida, não sabia o que fazer. Tudo o que eu queria era vê-la feliz. Por outro lado, queria merecer a chance de ao menos experimentar o gostinho de viver. Deve ser tão bom!
Eu já tinha dado sinal de vida antes desse moço por quem mamãe se apaixonou aparecer, mas ela preferiu mentir sobre a minha existência. Teve medo de ser julgada e abandonada outra vez. Antes sempre alegre, ela caiu numa terrível depressão e eu também, porque tudo que mamãe vê eu vejo, tudo que mamãe sente eu sinto.
Tudo isso me fazia ter crises existenciais; apesar da barriga da mamãe ser muito aconchegante, queria me libertar, criar uma identidade própria...Queria sair da escuridão!
Enfim, chegamos à casa roxa da cartomante. Ao entrarmos, o cheiro de incenso penetrava nos poros o que me deixou um pouco atordoado. Mamãe ficou com dor de cabeça, mas acho que era de preocupação. Começou a chorar e contar sua triste história à cartomante que rapidamente pôs as cartas do tarô na mesa e deu resposta às dúvidas de mamãe.
Aquela angustiante espera de mamãe me provocou náuseas e começei a me debater, fazendo com que ela lembrasse que eu ainda estava ali. Estaria sempre ao seu lado, se ela assim desejasse. Era uma questão de escolha.
Sem antes ouvir a resposta, saiu da casa meio a esmo. Fomos parar numa clínica de aborto. Não conseguia odiá-la, pois era minha mãe e muito menos ao moço, pois ela o amava, talvez mais que a mim.
As paixões são incertas. Fico só pensando se vale a pena trocar uma relação estável por uma aventura. Pode ser que sim, pode ser que não.
Será que sentiria culpa ao me ver morto? Indefeso, eu não tinha culpa por ela estar naquela situação. Só podia confiar no bom senso. Mas não sei dizer se nessa situação o mais sensato seria me poupar. De qualquer maneira haveria uma morte: ou a do filho, ou a da paixão adolescente. Nunca é possível ficar com dois lados de uma moeda: quando escolhe um, o outro fica automaticamente descartado. Veja o meu caso, por exemplo, se escolher nascer, abandono o conforto do acolchoado ventre materno, mas terei o prazer de ver a luz de um dia de verão.
Entramos na clínica. Fiquei impressionado com a fila. Nesses tempos, anda cada vez mais fácil mudar de idéia. Mamãe não sentia-se bem. Imagens da vida passavam pela sua cabeça e a difícil decisão martelava seu cérebro, esmagando-o.
Decidiu. Saímos da clínica e fomos até a casa do moço de quem gostava muito, terminar o que nem havia começado. Abortou a possibilidade de amá-lo, já que ele era um moleque e seus sonhos não eram compatíveis com os dela. Quem sabe dalí a alguns anos eles se reencontrassem e fossem felizes? Seria obra do acaso. Nunca é bom contar com isso.
Os destinos meu e de mamãe, que antes apenas haviam se cruzado, se tornaram somente um. Ela seria minha mãe e eu seu filho e isso, nem o tempo, nem ninguém iria mudar.

quinta-feira, 20 de abril de 2006

Visita ao médico

1956
- Doutor, tá doendo muito.
- Espere um pouco, Helena!
- Tô sentindo um aperto no peito, será que é alguma coisa grave?
- Tenha paciência!
- Eu tenho dor!
O médico tentava acalmar a aflita Helena. Não podia examiná-la sem antes fazer a anamnese.
Há alguns dias, ela sofria calada uma dor intensa no coração.
- O que fez de diferente nos últimos dias?
- Me poupe doutor, não quero conversar. Quero que o senhor me diga o que eu tenho - disse com um riso cínico e irritadiço
- É o que eu estou tentando fazer - já impaciente
- Eu tenho medo de morrer - dizia sem parar - tenho muitas coisas para resolver na minha vida! - Se você me deixar examiná-la, saberei o que você tem.
Ela suspeitava de problemas irreverssíveis no coração, mas isso ninguém poderia perceber. Dona de casa dedicada, casou-se com um rico advogado com quem teve dois filhos. Cozinheira excelente. Era boa mãe. Tinha uma relação de suportabilidade com o marido.
- Ai ai, não quero morrer!
- A medicina muito avançou. Para vários males há tratamento.
Helena caiu num copioso choro. Nenhum deles sabia que o mal que ela sofria não era físico. O médico pegou sua mão e concedeu-lhe apoio àquele momento de desespero. Ela foi se acalmando.
- Tenho rezado muito, doutor.
- Exercitar a fé é sempre bom.
- Faço novena todo mês...
- Quando isso começou?
- Isso o quê? As novenas?
- Isso tudo: as novenas, as dores no peito?
- Nem me lembro mais - num suspiro - me sinto tão, tão infeliz...
O médico percebeu que confrontava um mal para o qual a cura não seriam os remédios.
- E o que você pede exatamente? - indagou astuto
- Que perguntas são essas? Peço para minha melhora, e para criar meus filhos, e para falar....e para criar coragem...
Confusa, desatou num choro ressentido e contido. O doutor apenas a observava e coçava o queixo. Excitada, mal conseguia respirar. Num sussurro, ela disse:
- Eu não posso, mas quero...eu, eu não sou como todas as mulheres...
Explodiu:
- Eu não quero arrumar a casa, eu não quero filhos, eu não quero carinhos de um bigode e... Percebeu que fora traída pela própria emoção. O médico arregalou os olhos, mas não se deixou levar pelo julgamento óbvio e instantâneo. Respirou fundo:
- Fale com ela.
- Falar com quem?
- Helena, você é adulta...
- É difícil saber o que dizer...
- Não, é simples: diga a ela que você a ama.

sábado, 15 de abril de 2006

O samba sabe o que diz

Há duas semanas, fui ao Samba da Vela, um projeto da Comunidade de nome homônimo, sediado em Santo Amaro. Além de celebrar o mais puro samba de raiz, a preocupação em conscientizar frequentadores sobre os cânceres da sociedade é presente nas letras das músicas e nas falas dos chefes da Comunidade. Fiquei impressionada ao perceber que o mesmo povo que grupos de intelectuais obsoletos alcunham de ignorante e alienado, não o é. O proletariado, a massa supostamente comandada pela aristocracia pós-moderna tem um projeto de resistência muito claro, mas não tem voz. Ai reside o cerne da questão.As letras dos sambas falam de amor, de política, de cultura, enfim, da vida. Falam do passado com nostalgia, do presente com desengano e de um futuro utópico.
O sambista Murilão, no alto do seus 70 anos, foi quem mereceu uma atenção especial na noite de ontem. Ao ser chamado a compor a roda, juntar-se aos seus, levou uma composição que falava da situação política do Brasil e dizia mais ou menos assim:
"Acabo de vir de Brasília, (ajeitando a gravata)
e vou contar a vocês meus amigos,
o que é o conselho de ética,
é uma doença morfética,
que por lá se espalhou"
Vou parar por aqui. Acredito não ser necessário mais nada dizer. O povo não é burro. O povo sabe. O povo fala. Os escândalos que o Brasil conheceu o ano passado, e que continua vendo ainda hoje, passam pela composição simples do Murilão. Do Conselho de Ética muito se falou, pouco se entendeu, nada se resolveu. Está na boca da roda de samba, que é o retrato do Brasil.
(em breve vou disponibilizar uma série especial para rádio sobre o Samba da Vela que ajudei a produzir)

terça-feira, 11 de abril de 2006

Mais um palhaço do circo sem futuro

O OESP, nessa última semana, não fala em outra coisa a não ser na metástase cancerosa que culmina em mais uma execução pública. Os holofotes estão em Suzane - outro câncer - a menina rica e assassina e a morte súbita do (i)maculado ministro da Fazenda Antônio Palocci.
Os jornalistas mais entendidos opinam, cientistas políticos e ex-petistas falidos e decepcionados o crucificam e ele, acredito, só faz piada. Aliás, o espetáculo circense está nos 45 do segundo tempo. É consenso entre os colunistas do OESP não descartar a possibilidade de Lula não terminar o ano no Palácio do Planalto. A OAB já se mobiliza em torno de um documento que pediria o impeachment do presidente Luis Inácio Lula da Silva.
O governo não perdeu mais um homem. Palocci significou, até o momento, elemento de redenção no julgamento que o povo fará em outubro desse ano. Para a opinião pública, ele não era apenas um dos únicos pilares da ala governista, mas aquele que havia conduzido os rumos da economia para o bom caminho. Ganhou respeito internacional - inclusive mudou a posição do Brasil na OMC - e alavancou os ganhos econômicos nos últimos anos. Estava executando um Ministério respeitável.Depois de se envolver nos escândalos com o carismático caseiro Nildo - palmeirense e gente da gente -, que tocou o coração dos brasileiros e teve seus quinze minutos de fama - quem não os quer? - foi enfiando o pé em um buraco profundo, onde lá no fundo havia uma jaca. Mole e podre. Aí, nem é necessário terminar a história.
O fato é que como todo réu, Palocci se declarou inocente, fez cara de dó e num momento de descontração fez a seguinte declaração: "A nossa economia está no céu. Já eu, estou mais para o lado do inferno de Dante"A piada é boa, mas a conduta merece cartão vermelho. Não acredito que ele estivesse em condições de fazer pilhéria - agora, menos ainda. Mas em se tratando de um espetáculo teatral, com fortes influências circenses ou mesmo da comédia dell'art, a cortina se fechou a semana passada. De palhaçada empatou com tantas outras figuras políticas destituídas do poder nos últimos meses. No quesito humor, ganhou em disparada. Fez humor negro da própria desgraça.

Crescer é muito difícil! - parafraseando Guimarães Rosa (licença poética)

A real medida das coisas: as escolhas e as perdas que elas implicam, a linha tênue entre afetividade e paixão e o abismo invisível existente entre confiança e traição, são alguns dos conflitos da alma abordados a partir de uma narrativa introspectiva, detalhista e ao mesmo tempo enxuta. O eixo temático de Longe da Água, de Michel Laub, escrito em primeira pessoa e com discurso indireto, é a culpa.
Ambientado em três espaços físicos – Porto Alegre, onde o narrador viveu a infância; Albatroz, a praia na qual passava as férias e São Paulo, que conheceu na maturidade – o livro usa o presente para falar de um passado que talvez não deixe saudade. Laura e Jaime são as figuras marcantes do livro e representam, para o protagonista, ao mesmo tempo alívio e angústia. As dúvidas enfrentadas na adolescência, a descoberta da sexualidade e a edificação de uma personalidade madura são temas corriqueiros que, para o autor, adquirem simbologias específicas no desenvolvimento da história.
Michel Laub fala com verdade e com sentimento, fator que deixa em aberto quanto do conteúdo do livro é autobiográfico. O que no início parece uma contenção de sentimentos se revela como necessidade de trazer à tona os pensamentos mais íntimos. Fica a questão como um mistério indissolúvel: cada um tem uma versão para o mesmo fato. A história do livro adquire curiosamente um caráter universal, provocando uma sensação de encaixe, uma espécie de ‘dejavú’.
É possível avaliar que o autor tem pela reflexão verdadeira adoração, elemento fundamental para a construção de um enredo carregado de conteúdo psicológico, que só se mostra à medida que a leitura vai prosseguindo. Entretanto, um ponto negativo na parte final do livro, momento que o leitor, imerso no universo dos personagens, não tem mais tempo para devaneios. O uso dos flash backs dão a impressão de obsessão pela idéia de que o personagem é marcado por algo mal resolvido.
O texto, embora seja delineado por um estilo do autor, não oferece nada de inovador ao leitor. O tema é recorrente em muitas obras da literatura. Apenas para citar: “Olhai os lírios do campo”, de Érico Veríssimo, apresenta estrutura e temática semelhantes ao Longe da Água.
Michel Laub não abre a porta de supetão; entra sorrateiro, sem que ninguém perceba. Prepara o leitor para situações posteriores, que vão se desenvolvendo ao longo da história. É um torpor sutil. As frases curtas, os capítulos reduzidos e o encadeamento das palavras na estrutura global do texto dão leveza e ritmo, como uma valsa de Offenbach; mas o significado que elas adquirem no contexto é pesado e denso, como um adágio de Bach. É como dizer um palavrão sorrindo. Falar dos conflitos da alma é demasiado complexo: aquilo que todo ser humano sente, mas nenhum tem coragem de falar.
O personagem cresce, amadurece, mas para isso sofre: sente-se culpado por coisas que poderiam ter sido diferentes, se assim ele quisesse, mas não foram, por outras tantas adversidades da vida. E ainda que um senhor – que alguns poderiam chamar de pai, outros de sábio – dissesse que há duas formas de aprender: pelo amor ou pela dor, a escolha unânime é pela segunda opção.

(O livro Longe da Água é do escritor gaúcho Michel Laub, radicado em São Paulo e editor da Revista Bravo!)

domingo, 9 de abril de 2006

Em tempo...

"A nossa economia está no céu. Já eu, estou mais para o lado do inferno de Dante"
(Antônio Palocci, há duas semanas, quando ainda não tinha 'cedido' o Ministério da Fazenda a Guido Mantega)

quinta-feira, 6 de abril de 2006

Tudo errado

Uma cena.

Baladinha. Uma birosca decadente: pouca iluminação, algumas mesas de bilhar e um palco de madeira, onde vivia uma colônia de cupins. A banda tocava sabe-Deus-o-quê, mas eu e uma amiga dançávamos. Sei que aquela noite tomamos muito frozen, porque na compra de um você ganhava outro.
Eu, àquela hora, estava com uma latinha de cerveja quente na mão. Esses bares que não vendem cerveja de garrafa são os maiores fins-de-carreira. Considerando a minha noção etílica, um cara de uns 40 anos estava próximo a nós duas. Ele estava mais louco do que todos os super-heróis juntos e tinha um bigode que deixaria qualquer mexicano que se preze no chinelo. A camisa aberta até o umbigo e umas várias correntes de prata, que mais parecia latão. Suava em bica e as pernas tremiam tanto num requebrado que era só dele. Parecia aquele burrico paraguaio, feito de madeira, todo articulado e com um mecanismo que é possível mexer cada um dos seus membros. Todo mundo teve um quando criança. Um marionete, desengonçado e bêbado, que dançava freneticamente.
Como não haveria de ser diferente, o cara estava se achando no direito de ocupar todo o minúsculo espaço da improvisada pista de dança. Esbarrava nas pessoas, pisava nos pés ao seu redor e era necessário desviar dos golpes despretensiosos da sua mão descontrolada. O problema foi quando ele nos focou. A música, antes a diversão da noite, passou a ser fator secundário; o principal para ele atazanar a mim e a minha amiga.
Esbarrou uma vez. Pisou no meu pé pelo menos cinco vezes. Empurrou minha amiga, não uma, mas três vezes. Acertou com a face da mão no braço da minha amiga. Esbarrou mais uma vez. Eu comecei a dançar exagerada e esbarrei, sem-querer-querendo, nele. Continuamos a curtir o som e a dançar. Apesar do inconveniente de carne e osso, eu estava muito tranqüila. A minha amiga, não.
Quando ele pisou pela oitava vez no pé dela, não hesitou:
- Ei - cutucando o ombro do cara - pára de pisar em mim!
- O quê?
- Pára de pisar em mim! - dessa vez gritou, bem próximo do ouvido dele.
Eu, distraída, estava mais em outro plano, alheia a discussão. Não ouvi, tampouco vi nada. Só senti o murro canhoteiro. A mão fechada, toda força raivosa de um homem bêbado e bigodudo, concentrada e explodindo no meu ombro.
Fui jogada para trás, desprotegida. Algumas pessoas que asistiam a cena vieram me acudir. O bigodudo foi atacado por todos os seres do sexo masculino presentes, revoltados com a atitude:
- Bater em mulher não, rapá - gritou um deles
O tiozão foi espancado e jogado para fora do bar. Eu, atordoada e nauseada pelo murro, percebi o que acontece quando a pessoa errada, está no lugar errado e na hora errada.

Francisco Buarque de Holanda

O Chico Buarque deveria ter um epíteto: O Gênio

"A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu" (trecho de Pedaço de Mim sobre a saudade)

"Assim como ele veio partiu não se sabe prá onde; e deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe. Esperando parada, pregada na pedra do porto; com seu único e velho vestido cada dia mais curto" (trecho de Minha História, no qual ele conta que a mulher - mãe - virou prostituta)

"Chorar sua vida vivida, em vão(...) Chorar o seu tempo vivido em, vão" (trecho de Ai, se eles me pegam agora, falando de arrependimento)

"Pelo cordão perdido, te recolher prá sempre, à escuridão do ventre, curuminha, de onde não deverias nunca ter saído" (esse trecho de Uma canção desnaturada, faz parte da Ópera do Malandro, momento em que a personagem Teresinha abandona a mãe para fugir com um mau caráter. A mãe, desapontada, diz isso para ela)

"O tempo passou na janela, só Carolina não viu" (Carolina fala de vida reprimida e mal vivida, de tristeza e arrependimento)

"Quero ficar no teu peito, feito tatuagem. Que é prá te dar coragem prá seguir viagem depois que a noite vem." (Tatuagem é um dos muitos exemplos em como Chico explorou com genialidade a alma feminina, assumindo o eu-lírico feminino)

"Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida, pra agradar meu coração. E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, ainda quis me aborrecer. Logo vou esquentar seu prato. Dou um beijo em seu retrato e abro os meus braços pra você" (Com açucar, com afeto novamente incorporando o eu-lírico feminino, da mulher apaixonada pelo marido boêmio)

"O amor não tem pressa ele pode esperar em silêncio, num fundo de armário, na posta-restante, milênios, milênios no ar. (...) Futuros amantes quiçá, se amarão sem saber, com o amor que eu um dia deixei prá você" (Futuros Amantes fala do amor incondicional, do amor verdadeiro que não acaba nem com o tempo, nem com a frustração de ser somente platônico, de existir somente na imaginação)

"Me dê a mão, a gente agora já não tinha medo. No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido" (João e Maria fala da inocência, da nostalgia de um tempo, da lembrança)

"Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro: chave, caderneta, terço e patuá. Um lenço e uma penca de documentos pra finalmente eu me identificar, olha aí. Olha aí, ai é o meu guri" (O meu guri é uma crônica. O eu-lírico feminino, dessa vez a mãe de um marginal que o defende com orgulho de mãe-coruja: insiste em não aceitar a realidade de que o seu filho é escravo do crime)

Apenas alguns excertos, que simbolizam uma parte ínfima da obra dele, mas que me tocam de alguma forma.
Para quem gosta e quer mais, sugiro o site: www.chicobuarque.com.br

quarta-feira, 5 de abril de 2006

Devastação

De repente, um vento forte tomou conta do lugar. Meus olhos fitaram o que a princípio parecia ser um rodamoinho, mas que ia tomando proporções demasiado exageradas, se transformando em um furacão. Tentava fugir, mas uma força estranha impedia. Corria para todos os lados a procura de uma saída, sem obter êxito.


Meu pensamento estava todo ocupado com tolices que não me permitiam racionalizar uma solução. Minhas mãos geladas, minhas pernas bambas, meu coração apertado, me faziam sentir um medo nunca antes experimentado. Seria o meu fim?


Movida por um impulso irracional fui em direção ao furacão, num ímpeto de enfrentá-lo. Arrebatada, fui arrancada do chão, expulsa da realidade sem chance de volta. Vivia agora mergulhada em fantasias...


Pisando em nuvens, percebi que toda aquela confusão, aquele cenário de devastação era interior, acontecia no meu coração: era amor.

terça-feira, 4 de abril de 2006

Uma simples homenagem

Por Maria Teresa Cruz

PORTA
TORTA
ARTERIA
AORTA
SE ENTORTA
MORTA FICA
DESENTORTA
ARTERIA E PORTA
ABORTA
ABERTA
PORTA
VITA
SE ENTORTA
PORTA E AORTA
CERTO QUE FICA MORTA
DESENTORTA
ARTERIA E PORTA

ROTA DA VIDA

(A poesia concretista é o que há de mais tocante, no sentido literal da palavra. Ela é simples e isso é fantástico. Vocês conseguiram visualizar a artéria aorta e a porta? Percebo uma semelhança incrível entre elas: tanto porta quanto aorta significam passagem. Pela porta passa gente - necessariamente viva - , logo passa vida. Pela artéria Aorta passa sangue, que carrega hemácias e leucócitos, necessários a vida. Viva Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Arnaldo Antunes!)

domingo, 2 de abril de 2006

A História se repete

Diálogo entre as obras “Ilusões Perdidas” de Honoré de Balzac e “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto

Uma narrativa ambientada na Paris pós-Revolução Francesa. A outra, no Rio de Janeiro, em um Brasil, ainda colônia, que assistia às primeiras décadas de República. A primeira remete a obra “Ilusões perdidas”, de Honoré de Balzac e a segunda, ao livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto. Há um ponto em comum: o eixo norteador no qual está inserido o personagem, inquieto e sonhador, movido por uma busca incessante. Inserido em uma realidade sem perspectivas, tanto Lucien Chardon, de Balzac, quanto Isaías Caminha, de Lima Barreto, personificam o inconformismo, a ambição, a decepção, o conformismo e a entrega.
Vindos do interior, Lucien – com suas poesias e seus originais românticos embaixo do braço, ávido por publica-los – e Isaías – procura resgatar a memória do pai, falecido, modelo de inteligência e fugir do estigma da ignorância de sua mãe – foram movidos pelo desejo de ser alguém na vida. Era em cidades grandes, como Rio de Janeiro e Paris, que havia terreno propício para construir uma vida de sucesso e reconhecimento. Era lá que as coisas aconteciam.
Ainda hoje, há nutrida a idéia de que a cidade grande dá oportunidades. Essa afirmativa dita, dessa forma, sem adendos, pode ser perigosa, até mesmo falaciosa. É inegável que a complexidade das grandes cidades seja terreno fértil para produção, principalmente quando se fala em jornalismo. A efervescência cultural é singular em grandes centros urbanos. Na mesma proporção, há um excedente de pessoas, sedentas por um lugar ao sol. Exige-se mais qualificação, aumenta a competitividade de maneira desleal e...onde estão as oportunidades? Esse é o jogo. Nesse sistema, os personagens vão ter que se amoldar.
Interessante notar como os personagens, mergulhados nesse mundo real, o percebem mais cruel e menos poético, e passam pelo processo de perda da inocência, da pureza que carregavam na essência, para dar lugar a ambição e ao desejo de projeção profissional. Assim, se entregam aos meandros do competitivo meio das relações de trabalho.
Decepções, como as recusas que recebeu Lucien ao tentar publicar uma de suas obras, e humilhações, como o fato de Isaías ser mulato num país de tradição escravista, vão construindo os destinos dos personagens. Hesitações os fazem, às vezes, parar para pensar em desistir, mas se mantêm firmes no intento.
Uma diferença na trajetória dos dois personagens merece ser apontada. Lucien, sempre nutriu a paixão pelas letras, queria ser literato e acreditou no jornalismo como caminho; percebeu, no entanto, o abismo existente entre a produção jornalística rentável e a literária. Isaías trazia um histórico de formação em humanidades, mas chegou a falar em medicina; acabou, por força das circunstâncias, trabalhando com as palavras.
Os acontecimentos vão conduzindo cada um dos personagens para um caminho de difícil regresso. Fazem concessões, trocam favores, conhecem o poder da influência e imersos nesse jogo de interesses, que não é exclusividade do jornalismo, mas da vida, percebem o quanto pode ser interessante transitar neles. Tudo tem dois lados, necessariamente sedutores.
Há expectativa em fazer um jornalismo mais livre, menos preso ao “modelão” do lead – que não busque apenas responder quem, o que, quando, como, onde, por que – e que, em última análise, pretende volver os olhos para os fatos e trazer o leitor à reflexão. É possível? Não se pode esquecer que a lógica capitalista move as relações sociais e o olhar do jornalista está imerso nesse contexto. E aí reside a crítica concebida pelos autores em cada livro: a “industrialização” do jornalismo, a informação como mero produto. Os personagens dos livros, cada um a seu modo, compreenderam isso. E entenderam como sonhos podem não passar de ilusões, de recordações.

sexta-feira, 31 de março de 2006

É o fim da picada!

Conceito elástico
Deu na revista jurídica Última Instância: Lugar onde clientes bebem e pagam por sexo não é prostíbulo, diz TJ-SP.
Qualquer um que tenha passado a infância e adolescência nas zonas do mais baixo meretrício apoia a decisão do Tribunal:
“Considerado, num país que tem um Congresso como o nosso, deve ser bastante elástico o conceito de putaria...”

Cão sem fucinheira - Homem fica 15 dias preso no Rio de Janeiro.
A moça ficou indignada:
“Focinheira com U? Esta eu nunca tinha visto. Espero que o redator seja mordido (levemente, vá...) por um rotweiller daqueles bem bravos!”
Moral da história: não se usa focinheira no Brasil porque muitos nunca ouviram falar em tal equipamento e alguns, quando o conhecem, nem sabem escrever o nome certo.

Márcio 2006 para presidente do Brasil
Tem gente importante sugerindo um novo nome para o PT lançar como candidato ao governo de São Paulo, ano que vem. O do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.

Essas pérolas, por assim dizer, foram emprestadas da coluna de Moacir Japiassu, para o site Comunique-se. Com licença e respeito, gostaria de engrossar o caldo:

Uma plaquinha resolveria o problema
Estava numa dessas viagens pelo interior do Brasil, quando já segurando o conteúdo da bexiga há mais de três horas, encontrei um posto próximo a Poconé-MT. Ao entrar no banheiro, para minha surpresa e motivo de riso contínuo pelas próximas duas horas, dei de cara com uma plaquinha: "Recopere com a limpeza, não cague no chão"
Moral da história: Se na próxima gestão presidencial, instituirem como lei colocar uma plaquinha dessas na entrada do Palácio do Planalto, quem sabe os freqüentadores parem de fazer cagada em qualquer lugar e resumam esse ato privado às suas respectivas privadas.

Obrigada!

quinta-feira, 30 de março de 2006

Canta à tua aldeia e cantarás ao mundo

Lançamento de livro é espaço de reflexão das diferenças na vida de cada um

“- Que é esse fumo, estrangeiro? É da Alemanha?
- É, é da Alemanha.Esse foi o começo de uma conversa que tive com um transeunte, em uma praça na cidade de Campinas, enquanto fumava meu cachimbo. Durante horas, o caboclo contou a sua história de vida. E tínhamos acabado de nos conhecer! Ao nos despedirmos, ele me deu a miniatura de uma panela de pressão, feita de lata de refrigerante. Aquilo tinha me tocado de alguma forma. Quando estava voltando para a Alemanha entrei no avião, cheio de alemães, e senti o choque cultural: as pessoas não se olhavam. Aí pensei que os alemães devem ser como panelas de pressão”.

Com humor o professor alemão da Universidade de Siegen (Alemanha) Bernd Fichtner iniciou a palestra referente ao lançamento do livro Diversidade Cultural – Globalização e culturas locais: dimensões, efeitos e perspectivas, de Leonardo Brant (org.), que aconteceu na Fnac – Paulista, na última terça-feira, às 19h. O livro é uma coletânea de textos produzidos a partir de 2002, com o objetivo de documentar discussões mundiais acerca da diversidade cultural e o espaço para o exercício da democracia, num mundo imerso em conflitos políticos e sociais.

Leonardo Brant é comunicólogo, formado pela Faculdade Cásper Líbero e se dedica desde 1999 à Rede Internacional pela Diversidade Cultural (RIDC), um orgão que visa representar a classe artística, ativistas e organizações culturais, propondo alternativas de espaços para a cultura, as artes e as relações humanas na era da globalização, em conferências anuais. Contudo, nem todos os textos são de integrantes da RIDC. “A idéia da diversidade transbordou e alcançou até o processo de seleção dos textos que formariam esse manual”, brinca Brant.

Na palestra, Bernd abordou a crise mundial da educação e qual a importância da diversidade cultural para reavaliar métodos clássicos educacionais ultrapassados, preocupados em ensinar conceitos, que servirão à sociedade, mas não propiciam a formação de um cidadão do mundo. “Escolas alemãs que desconstruíram a hierarquia professor-aluno, fomentaram no aluno o senso de responsabilidade em produzir e gerenciar o próprio conhecimento e tiveram resultados excelentes no processo de desenvolvimento da criança”, relatou o professor. “Nesse caso, a diversidade foi absorvida. A pedagogia ultrapassada se preocupa demais com conceitos. O que importa não são os conceitos, mas as relações que você é capaz de estabelecer com o diferente de forma igual”.

Na opinião de Bernd, a necessidade de diferenciar cultura e diversidade cultural é suprida no livro. “Aprendi com o livro que a diversidade cultural não está no mesmo nível do nosso conceito de cultura. Diversidade cultural tem a ver com propostas, posicionamento diante da vida, visão de mundo. Uma cultura tem muito mais a ver com fronteira, limites que entram em colapso na nossa consciência toda vez que nos defrontamos com outra cultura”, constata. “O livro não tem nada de acadêmico, por isso não é massante”, pontua o professor, “tem algo de provocativo que eu gosto muito e se aproxima de um manual com propostas das mais diferentes formas do exercício da democracia, num mundo onde a intolerância e o individualismo matam qualquer perspectiva de igualdade”, finaliza.

Em seguida, Leonardo Brant falou a platéia. Definiu o livro como “um espaço de reflexão, que fomente discussão, ou ainda, um instrumento de diálogo”. E acrescentou que o objetivo que carrega, ao assinar o livro é o de mudança na forma de encarar a vida. “Respeito com o diferente não é a palavra certa, celebração do diferente se ajusta mais a idéia de diversidade. Sentir o quanto a relação entre as pessoas podem potencializar uma ação, uma atitude,uma mudança. Multiplicar é a idéia. Deveríamos mudar a palavra individuo para ‘multivíduo’”, categorizou o autor do livro.

(Essa matéria foi publicada no site de Cultura da Faculdade Cásper Líbero, na terceira semana de setembro. O livro pode ser encontrado nas Livrarias Cultura e Fnac)

quarta-feira, 29 de março de 2006

Digite a senha, por favor

Sou metódica, confesso. Sistemática também. Compulsiva. E obcecada pela ordem. Concordo em gênero, número e grau com o fato de Deus ter transformado em sacramento essa prática tão essencial: a ordem.Tenho uma senha para cada segredo da minha vida. Dia desses – era uma terça feira, tola e nublada – como não haveria de ser diferente fui almoçar no restaurante do largo, no centro da cidade, próximo ao escritório onde trabalho. Restaurante por kilo.

Cheguei. Uma fila insana: cerca de 257 pessoas se amontoavam sobre os pratos, ávidas por uma colher de arroz ou uma coxa de frango. Um velho amigo me disse certa vez que restaurante self-service é a coisa mais grosseira que ele já viu, é a síntese da falta de educação. Ele tem razão. É o véio que tosse e cospe a dentadura na feijoada, é a perua que arruma as madeixas bem em cima do arroz – e caem algumas lêndeas, fruto dos sete dias que ela ficou sem lavar o cabelo para não estragar a chapinha nem desbotar a tintura –, é a gorda que pega oito bifes a milanesa, tem seus 5 minutos, quando sente-se culpada por trair o regime, morto na mesma segunda-feira que nasceu – e devolve cinco, por um acaso sujos do molho agridoce que ela colocou na salada. Ai, ai...Devaneios de uma baixaria.

Enfim, com algum esforço e certa persistência consegui fazer um prato razoável. Pesei e fui até uma mesa vazia, a única no cantinho do segundo andar do restaurante. Após a refeição, me dirigi ao caixa com a comanda em mãos. (Bati na testa). Abri a carteira e tinha apenas uma nota de cinco reais. É uma miséria mesmo. Afinal de contas eu ganho R$ 2,75 por hora. A mocinha do caixa percebeu meu desajeito e logo se antecipou em dizer que eles aceitavam todos os tipos de cartão, menos cheque. “Até o visa electron?”, perguntei. Ela acenou com a cabeça positivamente. Problema resolvido.Engano o meu. Ele começara ali, naquele momento. Passa o cartão. Digita, durante uns 5 minutos códigos aos borbotões: é o número da conta, da agência, a senha da máquina e o código do banco. Volta-se para mim e diz: “Digite a senha, por favor!”. Vamos lá. Só naquela manhã, tive que usar cinco senhas diferentes: para fazer uma consulta ao banco on-line, o meu login no computador, a minha senha de acesso a internet, a senha para o telefone do escritório dar linha – é o fim da picada, eu sei! É o novo PABX protegido com sua super senha de 12 números, sem repeti-los (háhá, pergunte-me como) – e a senha do e-mail. Olhei para a máquina. Ela olhou para mim e piscava psicoticamente: “A senha! A senha!”. A tonalidade verde daquela tela me deu náusea. De repente, um branco. Apagou tudo da minha memória. Que agonia! Como é que era mesmo a senha do cartão? 1279...não, não! 1259...ai...não não! Comecei a puxar os aniversários da minha família inteira na memória. Será que esta senha é a do aniversário da minha avó, ou do da minha cachorra, ou do dia que eu tomei um fora – essa ninguém esqueceria! A mocinha olhava, um sorriso falso, ansiosa para que eu saísse dali logo. A fila aumentava em progressão aritmética. Comecei a suar frio. Não lembrava. Não conseguia lembrar a maldita senha.

Olhei para a moça: “Paciência!”. “A senhora vai ter que pagar!”. Ai, que pressão. Essas mocinhas do caixa são muito insensíveis, sem coração. Propus se eu não poderia lavar uns pratos, sei lá...Ela disse terminantemente que não. Aí veio uma luz. Não, não foi desta vez que eu lembrei a senha, mas tive a brilhante idéia de fazer uma proposta: “Vou deixar meu RG como garantia de que voltarei para pagar”. A mocinha do caixa titubeou, olhou com desconfiança para a minha barganha. Aí eu cresci. Já estava tão prostituta dessa minha existência que fiquei valente: “ô minha filha, você acha mesmo que eu vou deixar minha identidade aqui eternamente?”. Ela olhou com ar de desprezo: “Você só pode estar louca!”. Joguei minha identidade no balcão, dei de ombros e fui embora. Fui embora com dor de cabeça, estressada, p. da vida, sem senha e sem documento. Por que comecei mesmo a contar tudo isso? Esqueci!

terça-feira, 28 de março de 2006

O vôo da borboleta

Os encontros eram cada vez mais freqüentes. Às cinco e meia da tarde, quando o sol já estava baixo, nos encontrávamos. E conversávamos a noite toda, distraídos e cada vez mais atraídos. Ele muito me respeitava e pouco questionava. Colocava sua mão sobre a minha, sempre respeitando o limite de dois palmos entre nós, que eu mesma havia estabelecido.
Chegava bem cedinho em casa, andando nas pontas dos pés para não matar o sono tranqüilo dos meus pais. Dormia e quase não conseguia mais diferenciar o dia e a noite, o sonho e a realidade. Perdi o apetite. Não via mais graça em tudo aquilo que não tivesse ele. As minhas roupas começaram a ficar velhas e desengonçadas. Ficava esperando o sol ir embora para com a chegada da lua poder encontrá-lo.
Os últimos dias não tinham sido muito fáceis. Andava triste e angustiada. Roía as unhas até sangrarem e depois me sentia uma tola. Minha mãe, preocupada, me perguntava todo dia o que estava acontecendo comigo. Meu pai só olhava e pedia para ela ficar calma. "Ela está apaixonada. Coisa de criança!". Geralmente os pais ficam com ciúmes ao verem as filhas amando pela primeira vez. No meu caso, acho que ele pensava ser tudo fantasia.
Aquela terça-feira foi diferente. Eu estava me sentindo diferente, não sei. Por um momento, meus pés saíram do chão. Fiquei sem rumo, sem referência. O encontro, aquela noite, foi especial. Tudo igual. Cheguei para encontrá-lo, pontualmente; sentamos no sofá e ele me contou como foi o seu dia - eu não quis falar. Sentia alguma coisa estranha em mim. Um calafrio da raiz dos cabelos até a ponta do dedão do pé. Tirei o casaco.
- Que estranho, de repente ficou calor.
Ele riu, depois saberia, da minha inocência. Passou a mão no meu rosto com ternura.
- Comprei uma rede. É amarela, sua cor preferida.
- Que linda! Na feirinha da praça?
- Isso mesmo. Vamos lá na varanda prá ver?
Não disse nada apenas aceitei. Ofereceu sua mão direita para me amparar e me abraçou. Foi o primeiro contato corpo a corpo após meses. Eu permiti, porque achei que era chegada a hora.
Não lembro de mais nada, só de um formigamento nas pontas dos dedos. Que boa sensação aquela. Na quarta-feira já não era mais a mesma.
Fui para casa antes de amanhecer. No café-da-manhã, minha mãe me esperou com uma linda caixa de presente.
- Achei que você andava tristinha, filha. - e me deu o pacote
Tirei o laço lilás e rasguei o embrulho prateado. Era uma boneca. Não consegui agradecer. Achei que minha mãe teve uma atitude infeliz. Sorri:
-Mamãe, não quero mais bonecas; eu quero um jogo de panelas.

Amor deveria ser sempre amor, ora bolas!

(agradecimentos a Kelly Schwarz que escreveu comigo esse texto)

Lembro com carinho daquele tempo. Ainda era um pivete. Todos os dias esperava ela voltar da escola. Éramos vizinhos. Não dizíamos uma única palavra. De mãos dadas passeávamos no andar térreo do prédio. Imaginávamos estar nos lugares mais inusitados. Uma praia, um parque, um castelo, um moinho de vento...Acho que ela imaginava a mesma coisa que eu. Sentávamos no banco e ficávamos nos olhando durante horas! Era tão bom!E nem precisávamos falar nada.

Tomar “sorvete de bola” então era sempre uma diversão. Com a boquinha lambuzada ela ficava mais linda ainda, e eu, cada vez mais bobo. Sempre caíamos na gargalhada, até perder o fôlego, até a barriga doer. Era só a presença dela que me importava. Não precisávamos falar nada.No final de tarde voltávamos para casa e eu, cavalheiro, a acompanhava até a porta de sua casa. Dava-lhe um beijo no rosto. Ela segurava minha mão com força, me olhava e os dedos iam deslizando até que se separavam. Esperava eu entrar no elevador, a porta se fechar até que não me visse mais. Um dia isso realmente aconteceu!

Está muito quente nesse final de tarde. Volto para casa e sei que alguém me espera. Queria convidá-la para um passeio no parque ou quem sabe para tomar um “sorvete de bola”, mas sei que ela vai rir de mim. Da minha infantilidade e da minha primitiva e singela demonstração de carinho. Ora bolas, essa era a minha referência de amor. E ela não entende!

Hoje é necessário ter muito o que dizer para provar o amor. Eu acho que era muito mais verdadeiro antes: o amor deve ser simples. E se dividir uma bola de sorvete, andar de mãos dadas, olhar nos olhos o silêncio e o grito ou rir com o outro até doer a barriga não for amor, eu sinceramente não sei o que é!A espera diária sempre infinita, mas certa, me faziam feliz a cada dia. E o que alimentava aquela sensação ímpar era saber que o sorvete de bola não derreteria nunca antes dela chegar. Hoje é preciso tudo explicar a pessoa amada. Homem e mulher se casam, procuram dinheiro, sexo, porquês e vivem numa conjugal solidão. E se amar antes era simples, hoje amar é por quê. Tenho saudades! Por quê?