segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Hesitante

Hoje ela entendeu o que sente quem está prestes a dar cabo da vida. Ela seguia pelo viaduto Antonio Nakashima, no centro de São Paulo. Queria chegar a Marginal do Pinheiros, estava tão longe, estava tudo tão engarrafado, ela se perdeu nos pensamentos. O peito já doía na Vila Matilde, quando passava pela Radial em direção ao centro, há pelo menos 20 minutos. Imaginava que a dor era semelhante a de alguém em processo de infarto do miocárdio. Era angústia. Não conseguia compreender porque estava se sentindo tão só. Tudo bem que ele havia a deixado sem maiores explicações e já estava feliz em outro relacionamento. Faltavam peças àquele quebra-cabeça. Como alguém poderia ter o poder de arrasar a vida de alguém daquela maneira?
Começou a transpirar. Ligou o ar-condicionado. Sentiu frio. Depois vieram os calafrios. O vidro meio aberto, depois meio fechado. Em seguida, fechado por completo. A música que tocava no rádio, "Bandeira", era uma de suas preferidas. Mas não conseguia ouvi-la. Tudo a incomodava. O sujeito que estava no carro ao lado estava dirigindo praticamente deitado. Como alguém conseguia tal proeza? O táxi que estava a sua frente não estava prestando atenção no trânsito. Quando o bloco de congestionamento se movia, o taxista demorava muito. Que irritante! No carrro de trás, repleto de jovens, ouvia-se música muito alta.
Olhava o viaduto sobre o qual estava parada. Olhava distante o viaduto 25 de março. Tentava calcular a altura. Qual o melhor ponto para despencar. A queda teria que ser infalível, afinal de contas, não morrer e ficar inválida só atrapalharia mais ainda a vida dos outros. Era assim que pensava. Atestado de incompetência pular e não morrer. O fracasso não era apenas nos amores mal fadados, mas no intento de morrer. Isso não!
Olhava a direção. Olhava o trânsito. Olhava o viaduto. Decidiu o ponto que pularia. Olhava para a porta. Pensava em sair e pular e acabar logo com tudo aquilo. Voltava para a realidade, respirava fundo. Olhava a direção, o relógio, o trânsito que não andava, sentia o o coração apertar, ânsia, muita dor de estômago. Colocou as mãos para a abrir a porta. Olhava para o céu nublado, a garoa típica de São Paulo. Olhava mais uma vez para os dois viadutos, fazia cálculos e comparação impossíveis de serem comprovadas. Respirou três vezes. Fechou os olhos. O coração doía muito. Pensou que, na verdade, o suicídio era uma fuga. Literalmente. O suicida não quer morrer. Ao menos não escolhe o caminho da morte e sim o da não vida. Nega a vida que leva. Quem dá cabo da vida está sofrendo, sente angústia, sente pesada a vida que leva. Mas isso não significa que pensa na morte. O impulso é de fuga: fugir da angústia que sente, que o persegue. A morte é a consequência do ato de procurar uma saída.
Abriu os olhos. O trânsito andou mais um pouco. O telefone tocou: uma amiga. Sentiu culpa. Suicidas não sentem culpa. Percebeu que era uma fracassada como potencial suicida, bem como no amor, e desistiu.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Os vizinhos

Eles tinham uma importância ímpar em minha vida. Engraçado que eu esqueci de dizer aquilo quando eles vieram para a despedida que toda a turma do bairro havia organizado. Era outubro de 1973, fazia um sol de primavera tão bonito e quele dia até escureceu um pouco mais tarde. Meus vizinhos partiriam no dia seguinte para uma outra cidade, no sul do Mato Grosso.

Como eu era filho único acabei me apegando muito a eles. Nas minhas memórias mais remotas da infância eles já estavam presentes. Simplesmente não lembro de existir sem que eles também existissem.

Eles eram em três. Formamos o quarteto fantástico com a minha chegada ao grupo.

De repente, numa quinta-feira tão tola quanto essa história, eles foram embora. Me deixaram em um bilhete escrito em papel de pão o endereço da nova morada para que pudéssemos nos corresponder. Eu nunca mais pisei no correio.

Quando decidi que queria cursar psicologia, fui muito criticado. Diziam que eu queria me tratar, vê se pode? Os anos de faculdade passaram tão rápido, que nem deu tempo de ter saudade. Acabei indo para a área de atendimento em clínica. Congnitivista. Aprendi que a gente deve aprender com os erros nesse direcionamento psicológico que adotei, mas nunca consegui colocar tal intento em prática. No mínimo, curioso.

Na época do estágio conclusivo, me deparei com uma dificuldade qualquer no encaminhamento do tratamento de um paciente. Minha supervisora disse para eu procurar outro tipo de terapia para meu auto conhecimento, pois o tratamento a que eu estava me subtendo para não enlouquecer com a história de vida do outro, não estava funcionando. Eu não passaria do estágio se não desse prosseguimento ao tratamento do meu paciente, mas simplesmente não conseguia. Algo não identificado aparecia como obstáculo. Passei por uma analista, por um Jungiano, um behaviorista radical, mas ninguém resolvia meu problema. Continuava tratando o paciente que me incomodava. E o incômodo advinha da semelhança entre as histórias de vida minha e dele. O paciente havia negligenciado as lembranças de alguém que gostava muito. E se torturava por isso. Acabei passando o paciente adiante.

*

Ele estava beirando os 30 anos, e aquela ideia de negligência o perseguia. Numa conversa informal com um amigo da faculdade teve o insight: precisava se reconciliar com seu passado. Mas como encontraria os seus vizinhos se aquele papel de pão amassado foi jogado no lixo tão logo o caminhão de mudança dobrou a esquina?

Tinha os nomes e iniciou sua busca. O ano era 1992 e o computador ainda era privilégio de alguns poucos novos ricos. Comunidades virtuais como existem hoje, coisa de ficção, realidade improvável. Encontrou em uma lista telefônica o que procurava. Telefonou. O telefone era alugado. Mas os locatários sabiam o telefone da família. Precisou insistir muito, inventar uma boa história para conseguir aquele número de telefone.

**

Liguei. Ao som do Alô reconheci a voz de Dona Marta. Um pouco fraca, envelhecida de certo, mas inconfundível. Me identifiquei. Ela se calou por alguns segundos. Pensei que a ligação pudesse ter caído. Insisti. A voz ficou hesitante. Dona Marta adotou um tom grave à conversa. "O que quer depois de tanto tempo?". Fiquei pensando que ela estaria fazendo tempestade num copo d'água. "Pô, éramos apenas crianças", pensei. Mas saiu alto. "Sim, mas Laura esperou você ligar, escrever uma carta, esperou durante anos. E isso nunca aconteceu".

Era injustificável. Qualquer coisa que dissesse não poderia aplacar todo o desapontamento que causei aos integrantes do quarteto fantástico. Resolvi ser sincero. Disse que precisava resolver essa questão que havia ficado aberta e me prendia ao passado. Ela foi mudando o tom, acho que por pena. E permitiu que conversasse com seus filhos. Seu Teixeira havia falecido no ano anterior. Laura havia se casado. Marcos tinha um filho, mas estava solteiro. Juliano, o mais novo, estava estudando medicina.

Liguei primeiro para Laura. Ela foi tão natural, que todo o peso daquela espera, daquela dor de menina que esperou o príncipe encantado por anos, ficou para mim. Era uma voz de mulher, mas o jeito da menina que vi pela última vez. Como se do dia da mudança para aquela ligação houvesse passado apenas dois dias, no máximo, uma semana. Combinei um reencontro. Pedi que avisasse os dois irmãos. Tive receio de que me achassem um maluco completo e desprezassem aquele momento. Mas estava enganado. Não apenas Laura, como os irmãos foram ao meu encontro na data e horário combinados.

Depois de 19 anos, estava indo ao encontro de um passado que me atormentava como homem. E o engraçado é que não eram pelas pessoas, mas pela covardia, pela negligência, pelo péssimo hábito que adquirimos ao longo da vida de pensar que não precisamos de ninguém, que as relações devem ser circunstanciais.

O abraço foi longo. Tinha tanta coisa para conversar, mas, ao mesmo tempo, não tinha nada de assunto. Aquelas pessoas não faziam parte da minha vida. Porque eu não quis. Apenas por isso. Estávamos nos conhecendo naquele instante. Engraçado haver carinho, querer bem, mas não haver qualquer identidade.

Ficou alguma coisa daquele encontro. Não era amizade. Era, no máximo, uma ideia do que poderia ter sido uma amizade prá vida inteira. E agora tenho para quem mandar cartões de natal todo ano. E ligar nos aniversários. Só não consigo ainda acertar o da filha de Laura. Mas acho que ela não se importa tanto assim.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ser desequilibrada...

... é uma questão de ponto de vista. Nem sempre a sua reação diante de um problema é considerada a ideal pelas pessoas que te cercam. Pode ser o inesperado, um ato de desespero. Mas é uma reação.

Sendo assim, partiu de uma ação. E é aí que se deve focar a análise do problema. Sou do tipo que não acredita em meio termo, nem em indecisão. Algo é ou não é – ponto. Aliás, as não-respostas me irritam. Resposta retórica, resposta-pergunta. Tudo que não é direto. Aí, me sinto no direito de surtar.

O que existe de mais peculiar e, ao mesmo tempo, sinistro no amor, é que temos a mania de buscar qualquer esperança para manter vivo o que sentimos; qualquer beira de pano para enroscar os dedos. Essa, aliás, é uma mania que tenho desde pequena: quando preciso me sentir segura, logo me pego mexendo algo entre os dedos, seja a barra da camiseta ou da saia ou uma ponta da toalha da mesa.

O problema é ter a tal ponta para enroscar os dedos, mas achar que nas outras três pontas, outras pessoas fazem o mesmo. E quando perguntar se a desconfiança confere, duvidar dela. Querer desacreditar nela. Só confiar no olhar sincero visto nas primeiras horas da manhã ao acordar ao lado de alguém querido, no braço que te procura à noite e te puxa para perto, no coração que se acalma com o beijo de boa noite.

Esse texto é de autoria de Ana Paula Rodrigues, jornalista, parceira de Rádio SulAmérica Trânsito e de boas conversas, que não deveriam terminar nunca.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Estrela da vida inteira

Era a rotina. Por volta das nove e meia da noite, o filho ia escovar os dentes e, rapidamente, se aninhava debaixo das cobertas, ouvidos bem abertos para a história que a mãe ia contar. Todo dia uma história nova. Algumas se encontrava em bons livros de fábulas infantis. A maioria vinha da imaginação daquela mãe. Algumas poucas assinalavam verdades.

A história daquela noite seria do garoto Paulo. Ela contava que toda noite, antes de se deitar, ele abria a janela do seu quarto e ficava a contar estrelas. Queria saber se todas elas estariam sempre ali, naquele mesmo lugar. Se algumas partiriam, se outras novas chegariam. Incrível, mas com diferença de duas, no máximo três estrelas, todo dia a contagem era a mesma. Estavam todas lá, a espera do olhar de vida a ser lançado ao brilho incomparável de uma estrela. Talvez, apenas comparável a alegria de viver que tinha aquele olhar.

Ele gostava do dia, mas apenas quando fazia sol, porque o brilho do sol transmitia vida. Tal como o das estrelas, que ele procurava visitar toda noite. Mas as estrelas tinham com ele uma relação mais próxima dos desejos. Imagina só, toda a sorte de sonhos a serem realizados, juntos, ocupando o céu de Paulo, na forma de estrelas.

Um dia, o sol apareceu completamente coberto por nuvens. E dentro do garoto Paulo apareceu um espaço ocupado imediatamente por uma densa escuridão. Mas ele não se deixou abater. Os poucos fios de sol que apareciam de vez em quando entre as nuvens, tapavam pouco a pouco esse buraco. A luta ficava cada vez mais difícil. As semanas iam passando e os raios de sol iam se enfraquecendo, e o buraco ia aumentando. Mas Paulo não desistia.

Numa terça-feira, o sol não apareceu. Paulo aguardou ansioso a chegada da noite. As estrelas certamente estariam repletas do impulso de vida. Mas as estrelas não estavam lá. Paulo precisou subir até o céu para descortinar aquela escuridão. E não voltou mais.

O sol voltou a brilhar na quarta-feira, mais vivo e forte. Quanto as estrelas, olhe ainda essa noite pela janela do seu quarto e verá Paulo brilhando no céu, tal como as estrelas que admirava. Mesmo chovendo ele estará lá. Bem pertinho da lua, todo vaidoso e cheio de si. A maior de todas. Ele é estrela da vida inteira.

E o filho entendeu que as pessoas vem e vão. Nos dois movimentos, quase sempre de forma repentina. E a gente deve sempre optar pela vida, não importa em que plano seja essa vida. Paulo vive.

Homenagem ao amigo Paulo Américo, colega de profissão, com quem aprendi recentemente e de forma dolorida o quanto é importante acreditarmos e amarmos a vida, não deixarmos nada para amanhã e termos perseverança. Ele amou, viveu, lutou e aconteceu durante o tempo que teve aqui na terra. E deixou saudades e admiradores eternos. Eu sou uma delas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A parte da personagem que nos cabe

Eu não acredito mais no amor. Era assim que a peça começava. João e Maria. Mas não aquela história do casal pré-adolescente que foge pela floresta colocando no caminho migalhas de pão que em seguida são devoradas sem piedade por pássaros selvagens. Não! Não tinha nada de conto de fadas.

Era a décima desilusão que ela sofria e prometera, enfim, para ela mesma, nunca mais acreditar em palavras de afeto ou juras de amor. De algumas se lembrava; outras, preferiu esquecer. Ela lembrava de um amor adolescente, que abandonou e depois se arrependeu irremediavelmente. Mas ele não a quis mais.

João amava Maria. E Maria amava João. Tudo certo e resolvido? Não. Eles não podiam ficar juntos. Porque João tinha uma Ana. Mas não amava Ana, amava Maria. E porque não ficavam juntos? Porque as grandes paixões não têm um final feliz.

Ela penou para superar essa rejeição, mas conseguiu, com certo êxito. E veio outra grande paixão. Ele tinha uma filha, fruto de um relacionamento ainda latente, mas decidiu esconder essa verdade tão importante, tão fundamental. Aconteceu o que sempre acontece na vida real: ela o viu passeando no parque com a garotinha, que não devia ter nem cinco anos completos. Na fila do sorvete, observava a cena a certa distância, quando ouviu cada letra da palavra: "Papai!"

João e Maria eram amigos. E só. Pelo menos era o que vinha a público. O segredo tão óbvio era dividido entre os dois. E só. Se amavam tanto, que Maria aceitava encontra-lo às escondidas. Ele prometia que iria assumi-la, mas precisava de um tempo para resolver a situação com Ana. Ela esperou por dias, semanas, meses...

Ela jurou que nunca mais iria acreditar nos homens. Que tudo o que diziam ser verdade eram mentiras e as próprias mentiras eram mentiras. Mas deu crédito ao amor. Para ela, encontrar alguém passou a ser questão de honra. Se apaixonou por alguém que tão logo a desprezou. O vazio foi ocupado por uma carência que a fez cega. E ela engatou namoro com o primeiro que apareceu. No início ia tudo bem e ela pensou conseguir respirar aliviada. Nem um ano se passou e ele passou a bater nela. Desistiu.

Em nove meses, nascia o filho de Ana e João. E ficava cada vez mais difícil João dizer a Ana que não a amava. Que queria estar ao lado de Maria. Os laços entre os dois ficavam cada vez mais fortes. Maria pedia garantias, João deixou de dá-las. Maria ainda acreditou que tudo pudesse se resolver, e tinha, em seu íntimo, uma sensação de que tudo iria acabar bem. Mas se enganou. Mais uma vez.

Mais machucada por dentro que por fora, quando menos esperava e de onde menos esperava, veio o amor. Ele confidenciou a ela, que sempre fora apaixonado, só estava esperando o momento certo. Era aquele. Apesar de sempre muito confuso, ela acreditava no amor que ele sentia. Todos os amigos debochavam da mulher sonhadora em que tinha se transformado. Todos diziam que ele só queria enganá-la. Ela o defendia e acreditava na verdade do sentimento que ele nutria. Se declarou desejosa de ter uma vida ao lado dele. Ele negou. Disse que, na verdade, não gostava tanto assim dela. Determinada a esquecê-lo, ela foi se machucando e se fechando a outras possibilidades. Mas ia esquecê-lo, de qualquer maneira.

Depois de cinco longos invernos eles enfim se encontraram. Era primavera e ele lhe trouxe um ramalhete de rosas vermelhas, as suas preferidas. Ela agradeceu e o recebeu com um beijo no rosto. João achou Maria fria. Maria disse que o clima mudava bastante naquela região. Ele a beijou, ela consentiu. Em seguida, disse que finalmente havia tomado coragem de se separar de Ana e que, agora, poderiam viver o grande amor que sentiam um pelo outro. Maria, tão machucada quanto amadurecida pelos anos de espera, simplesmente levantou e saiu. Dizem que o amor existia, mas não aconteceu.

Logo ele estava namorando outra pessoa. E ela tentava, em vão, esquecê-lo. Mas ele não sabia nem metade do seu sofrimento. Fingia sempre estar bem. E começou a se acostumar com a ideia de não tê-lo. E a paixão que sentia foi se reduzindo às memórias das poucas vezes em que ficaram juntos. E ela se conformou. E justamente três dias depois, recebeu uma mensagem dele: "Você é uma mulher incrível. Mas eu sou um fraco falível. Você prá mim foi um sonho irrealizável. Não parece, mas, na verdade, te amo."

A personagem caminhou devagar até o procênio, se despiu. Levantou o rosto. Era a atriz: "Eu não acredito mais no amor".

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O esvaziamento dos movimentos sociais

Segunda-feira, 6h30. Rodovia Anhangüera com trânsito acima do normal sentido São Paulo. Um grupo de pelo menos 700 integrantes do MST (Movimento do Sem-Terra) marchavam rumo a zona oeste da capital. O destino era o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu. Manifestação pacífica e tudo correndo dentro do planejado. O itinerário seria Ponte Atílio Fontana, Monte Pascal, Brigadeiro Gavião Peixoto, Barão de Jundiaí, Rua Clélia, Francisco Matarazzo e Avenida Pacaembu até chegar a Praça Charles Miller. E assim foi feito. E a Polícia Militar escoltou o grupo de manifestantes fazendo com que a passeata fosse bastante ordeira e na maior parte do tempo ocupasse apenas uma faixa na via.
Eles reinvindicavam a reabertura da pauta de discussões acerca da Reforma Agrária. Um problema social.
Ao longo da passeata vi alguns manifestantes abordando os veículos que estavam travados no congestionamento, que se formava por toda a zona oeste, para pedir dinheiro. Um problema social que também não deixa de ser caso de polícia. Na chegada dos manifestantes a Praça Charles Miller soube que eles acampariam no Ginásio do Pacaembu e lá permanecerão até sexta-feira. Observei que muitos "manifestantes" estavam chegando em seus veículos particulares. E o pior, apenas um ocupante em cada veículo. Seria uma estratégia para atrapalhar mais ainda o já caótico trânsito e chamar atenção para a causa? Duvido um pouco...
E fiquei pensando duas coisas: essas 700 pessoas são desempregadas. Isso é um fato, uma vez que se eu dissesse para meu chefe que passaria uma semana em outra cidade e faltaria cinco dias do serviço seria demitida. Simples assim. Não consigo perceber de que forma esse tipo de mobilização pode mudar, curar o câncer que é a questão agrária no Brasil.
Dessa forma, não consigo separar o joio do trigo. Não consigo diferenciar os Sem-Terra, dos flanelinhas e dos usuários de crack que se proliferam no centro de São Paulo. É um problema social, mas também um caso de polícia.

Sobre poder e solidão

Um homem preto, pobre e sem perspectivas transforma-se em um dos maiores expoentes da música dançante brasileira - a pilantragem, no sentido literal, ainda que alguns críticos desprezem essa classificação, e no figurado - e também da bossa nova no final da década de 60. Esse homem tem nome e sobrenome: Wilson Simonal. O documentário Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei vem para prestar um justa, ainda que póstuma, homenagem.
É pequeno limitar-se a discutir se ele foi ou não um dedo-duro, um X9, enfim, um autêntico filho da puta. É grandioso e importante para as gerações que estão aí e as que virão sabermos da importância musical de Simonal. A overdose de ostracismo a que ele foi submetido a fórceps encerrou no alcolismo um grande artista brasileiro e impediu que os filhos da década de 80 (no caso eu) conhecesse o cara que virou a mesa, que, a partir do nada, criou tudo. Isso que fica para quem vai ver o filme.
Os militares no início dos anos 70 estavam cada vez mais impopulares, lembrando que em 1965 foi decretado o AI5 e reduziu a pó o pouco de liberdade de expressão que ainda resistia. Simonal era querido pelas massas. Além da fama, tinha dinheiro. Essa simples conta (fama+dinheiro) resultam em poder. Foi ingênuo. Um pouco mais que isso: foi ignorante. Mas não era nem possível esperar outra atitude dele: um cara que nunca teve nada e de repente tem tudo. Quem consegue manter o equilíbrio das emoções que atire a primeira pedra. Foi perverso e usou sim o poder que tinha para dar uma lição no, à época, contador Raphael Viviani, a quem atribuía a culpa pelo rombo nas finanças. Quanto a isso eu declaro: Simonal é culpado. Prevaricou, no sentido moral do significado de tal expressão. Foi anti-ético ao fazer uso do poder e influência em favorecimento de interesses pessoais. E era uma pessoa pública.
Agora, a partir daí, o empenho em ligar Simonal so DOPS é pura abstração, pura piração, quase uma palhaçada. Se ele foi ou não, caberia tão somente a ele saber. O que está em discussão é a ligação esdruxúla que fizeram entre um fato (o de um astro mimado, ansioso por ter seus desejos atendidos) e uma suposição (que ele fosse informante do serviço de repressão da ditadura militar).
Foi sistematicamente boicotado pela classe artística, principalmente pelos que faziam parte da questionável esquerda. E percebeu que estava só. Percebeu que não tinha ninguém, que na verdade não tinha amigos. Vivia cercado de gente, e cego pela fama, não percebeu que não cultivara relacionamentos sólidos. E o poder agora o deixava só.
O resto todo mundo sabe. Ou melhor, não sabe. Simonal morreu em 2000 e eu sequer me lembro dele. Sequer sei que influenciou o entretenimento da época, o conceito musical, quebrou barreiras e tinha um poder hipnotizante diante de uma platéia de mais de 50 mil pessoas (coisa rara para época, que ostentava esse número em platéias apenas nos Grandes Festivais).

"É terrível ver um homem dotado de gênio vitimado por um regime, esmagado por ele até aceitar seu destino como se fosse algo normal", disse o filósofo Isaiah Berlin. A frase diz respeito ao compositor erudito Chostakóvitch e a opressão que sofreu do Regime Soviético, mas se encaixa perfeitamente ao que imagino ser a cilada em que se meteu o malandro e malemolente Simonal. É nisso que acredito, com apenas uma ressalva: ele não foi vítima direta do regime, mas da própria soberba e da ignorância política com que se relacionou com a ditadura. Por puro capricho e desejo de cada vez mais ter mais poder.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

amar dói

Saíram da festa tão bêbados quanto conscientes. Ainda bem. Em tempos de "lei seca ao volante" não é bom facilitar. Ela estava com mais duas amigas. Ele pediu carona. Não teve como negar. Mas ela estava muito determinada a não ceder às investidas. Que na verdade poderiam ou não vir. Assim, bem confuso, como ele costumava ser.

Chegaram na lanchonete. As duas amigas que estavam no banco traseiro deixaram o carro rapidamente. Ela foi deixar o carro, mas acabou impedida. Ele disse:

- Acabou.

- O quê?

- Eu vi ela beijando outro.

- Ah, não. De novo não. Acha mesmo que eu mereço?

- Não, não...é que não sei...

- Novidade! Você nunca sabe de nada.

- Não sei se saio do carro ou te beijo.

- E o que uma coisa tem a ver com a outra?

- Tem que agora estou livre de verdade.

- Engana-se. Agora que começou teu problema. Vai querer saber de todo jeito quem é esse cara, o que ele tem que você não tem, como ela pode te esquecer tão rápido e se um dia poderá se sentir como ela se sente, ou seja, feliz.

- Isso é tolice. Coisas de mulher!

- Coisa de ser humano. Que ama. E falando nisso, se o seu problema está começando, como podemos perceber, o meu acabou de terminar: não sei quanto a você, mas eu vou sair do carro, tomar meu lanche e não vou mais falar disso com você, ok?

Silêncio. Ela abriu a porta e saiu do carro. Ele permaneceu lá dentro por alguns segundos. Ela bateu forte a porta, cerrou os olhos em arrependimento e começou a chorar. Amar dói. Ainda mais quando aquele a quem se ama não sabe corresponder.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Sobre bobagens tão necessárias

O sentimento que temos por alguém nunca é nosso. Ele pertence a outra pessoa. E deve ser entregue a ela. Depois, ela faz com ele o que bem entender. Mas esse processo deve acontecer. Foi pensando nisso, que ela o procurou. Primeiro seria um chá, mas ficou tão tarde. Em todos os sentidos. Não para ela.


- Por que isso agora? Você me disse ao telefone que não era nada urgente porém necessário...

- Exato...

- E então?

- Está sendo difícil para mim. É sempre difícil se expôr dessa forma, mas vou tentar. Sabe, muita coisa aconteceu nesses últimos meses, muita linha cruzada, muito vacilo, enfim. Mas precisava lhe falar, sabe, para que eu possa voltar a viver. Tenho muitas coisas a resolver na minha vida e uma delas inclui a gente, ou melhor, você.

- ...

- Eu sou completamente apaixonada por você.



Enrugou a testa, como se tivesse acabado de ouvir um furo de reportagem. Só um babaca não teria percebido AINDA que esse sentimento existia. E como existia.

- Não vai dizer que não sabia, eu dei muito na cara o tempo todo.

- Sim, você sinalizou mesmo, mas por que não veio ter essa conversa antes. Acho anacrônico termos isso agora.

- Me desculpe, mas discordo conceitualmente de você. Um sentimento legítimo nunca fica anacrônico. Fatos e objetos podem ser anacrônicos. Coisas palpáveis. A paixão tem essa propriedade?

- Tudo bem. Ok. Já fui apaixonado por você, mas agora, não há mais nada. Por isso digo que é anacrônico. Tive o encantamento que se quebrou. Vejo um descompasso em tudo isso.

- Quebrou por quê?

- Não sei.

- Mas existiu?

- Sim...Ou pelo menos eu acho...

Incrível como ela sabia o que queria. E como. E ele estava perdido. E como. Ele continua...

- Sabe, acho que até hoje não amei ninguém. Amo a ideia do que poderia ser o amor.

Ela pensava: "Eu, eu!... aqui, o amor bem aqui, olha prá esse lado....um pouco mais para o lado direito". E no milésimo de segundo seguinte se sentiu tola. Sentiu raiva, ódio mortal. Quase disse: "Olha, então fica com a sua ideia de amor aí, essa punheta sentimental, que eu vou VIVER o amor. Vou me lançar, vou arriscar. Daqui uns anos a gente se encontra e vê quem é mais feliz, pode ser?". Mas não conseguiu. Sentiu pena. E quis humanizar a conversa.

- Eu também sinto isso.

- Sente?

"Não babaca, eu amo você. De verdade.", quis dizer num ímpeto. Mas segurou as pontas.

- Sim. É normal. Até você encontrar a pessoa certa.

- É... pode ser.

- Posso pedir a conta?

- Não quer tomar mais uma cerveja?

- É outra conta. A das nossas vidas. Não quero vê-lo mais. Preciso disso, ok?

Ele pediu um abraço e agradeceu a sinceridade. Ela consentiu. Foram embora. Algum tempo depois ele foi procura-la. Não pagou a conta. Disse umas bobagens para ela acreditar o quanto era bonita e sensacional. Mas essa conta ela tinha pago. Não cedeu. Ela quer apenas um companheiro (=amor). Ele quer apenas que ela supra a carência afetiva dele (=vaidade). Não gosta dela. Na verdade, quer apenas alimentar esse sentimento para não ficar tão só. Vazio já está faz algum tempo. Bobagem!

terça-feira, 26 de maio de 2009

Carta ao não amor

Querido,
Me faltou coragem. Por isso escrevi, em vez de falar. Você me machucou tanto, que nunca pensei que fosse de verdade. Cheguei a pensar que em algum momento você iria dizer: acabou, era tudo brincadeira! Vamos ser felizes, agora? Mas você teve medo. O que iria acontecer depois? Te digo que eu não sei. E não importa. O primeiro passo é se permitir. Se permitir se entregar e receber a entrega do outro. E jurei tanto que não iria me entregar, que tinha o controle da situação, mas já era tarde. Estou apaixonada. E você disse que estava também. Isso de alguma forma significou reciprocidade, mas não era. E a única coisa que eu quero muito saber é: por que você mentiu prá mim? Teve pena de mim, só pode ter sido isso. Mas continuou na mentira, e isso é muito pior. Roubou alguns beijos, ligou, mandou mensagem, me fez acreditar que estavamos diante de uma centelha de um possível amor. Amor que precisava ser permitido para acontecer. Uma parte permitiu e a outra não. Você apenas permitiu idealizar e vive daquele espectro que foi o passado. Você é uma cara tão decente, tão transparente, ouso dizer ingênuo, às vezes. Não usa máscara de jeito maneira. Nunquinha. E, no entanto, insiste em ir atrás dela.
Não queria ouvir que você era apaixonado por mim. Queria a verdade, ou ao menos, a honestidade. Não tive. E doeu tanto. E dói tanto. Mas vai passar. Não consigo, no entanto, desejar que você seja feliz. Sim, desculpe, é uma fraqueza minha. Mas não consigo. Quero que você se ferre bastante. E que sinta bastante dor também. E que essa dor da alma extravaze e se torne uma dor física. Na garganta. Ou no dente. Como as minhas dores de ontem e de hoje. Meu cotovelo dói bastante também. Mas esse acho que foi mal jeito.

Sem mais, mas com o carinho de sempre.

domingo, 10 de maio de 2009

Sentir-se vivo

Tinha uma rosa nas mãos, embrulhada naqueles papéis de gosto duvidoso, mas que todas as floriculturas gostam e usam. Era a autêntica dama de vermelho. Trajava um vetido inteiriço, de crepe e três saiotes, todo vermelho. Vermelho carmim, vermelho fogo. As meias eram cor da pele, para apenas disfarçar as marcas do tempo, que não são aparentes apenas no rosto, nas óbvias rugas, mas no corpo todo. Os cabelos, cinzentos, quase brancos. Batom rosa na boca, lápis preto no olho, brincos iguais ao colar, de pérolas compradas na Galeria Pajé, e um sapato preto com 4 centímetros de salto. Estava no ponto de ônibus do corredor da Av. Francisco Matarazzo. Devia ter uns 70 anos. Ou mais. Senti pena num primeiro momento. Onde ela estaria indo? Porque, apesar de bem vestida, produzida, parecia tão abandonada?
E, absorta nesses pensamentos, presenciei uma das cenas mais bonitas, mais singelas, mais puras. Ao virar um pouco mais a cabeça para o lado esquerdo, notei um Monza 89, um pouco atrás de onde eu estava. O semáforo estava no vermelho. E, quando atentei para aquele homem, de 70 anos, ou mais, ele estava flertando com a senhora do ponto de ônibus. Olhava para aquela mulher, muito mais do que desejo, era a sensação de estarem vivos que estava latente. Ativos. Eu fitei aquela cena por alguns minutos, e, de tão sincera e bonita aquela descoberta diante de meus olhos, não queria que acabasse nunca. Queria ver se ela iria até o carro para falar com ele. Ou ele a convidaria para um passeio. A troca de olhares aconteceu, ela notou que estava sendo paquerada, se arrumou diante do pretendente, cheirou a flor, se debruçou sobre o gradil do corredor de ônibus, fingindo não estar nem aí. Ele, colocou o cotovelo para força e encarou-a na cara larga, como dizem por aí. Mas a necessidade do momento não era de uma paixão latente, um amor para recordar. A necessidade objetivamente foi cumprida: a sensação de estar vivo. O sinal abriu. O carros começaram a andar. Ela ficou no ponto de ônibus. Ele fechou o vidro do monza e saiu. O encontro nunca aconteceu. Mas como tinha vida naqueles olhares. Como pode haver tanta vida em alguns minutos banais.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sobre transtornos em qualquer idade

Chamaram mamãe de novo no colégio. Não conseguia fazer aquele exercício de matemática e a professora perdeu a paciência comigo, depois que perguntei pela 14ª vez, porque o delta era simbolizado por um triângulo.
- É apenas um símbolo.
- Mas poderia ser um quadrado então, não poderia?
- Já chega! - gritou, e num sussurro - Você é um garoto estranho mesmo...
Todos riram. Me senti humilhado. Como quando você erra o chute na cara do gol, depois de um passe perfeito. Ou quando vai tirar a garota prá dançar e recebe uma negativa na frente de todo mundo. O Cabelo, que por sinal era a pessoa mais desprezível do colégio, sentava bem ao meu lado. Veio e falou, baixinho:
- Imbecil!
E cuspiu na minha cara.
Perdi as estribeiras. Levantei, peguei minha cadeira e joguei na cabeça dele. Era para machucar. E machucou. Ele desmaiou e os cabelos se tingiram de vermelho em poucos minutos. Fiquei parado, atônito. E fui levado para a diretoria.

Duas vezes por semana, mamãe era chamada na escola. Eu tinha DDA (Distúrbio do Déficit de Atenção ou TDA (só que aí troca Distúrbio por Transtorno), mas não era com Hiperatividade, e ninguém me entendia nunca. Tinha dificuldades em me concentrar naquela aula chata de matemática ou no falatório que era a aula de História. Era o professor começar: "Antonio Conselheiro foi como ficou conhecido na Guerra de Canud..." e logo já pensava que tinha futebol às 16 horas no campinho perto de casa e que o Mauricio ia me ligar prá gente andar de bicicleta e que a Julia topou tomar sorvete comigo depois da aula. Coisas tão mais úteis do que aquela história de Guerra que teve até Conselheiro e Canudo no meio. Minhas perguntas eram sempre desprezadas pelos meus colegas e eu era sistematicamente ridicularizado pelos professores.

- Você tem que tomar jeito, menino - era o que minha mãe sempre dizia
- Mas o professor acha que estou tirando sarro, mas, mas é dúvida mesmo...
- O professor sempre tem razão. Dizem que seus colegas sempre riem do que diz, se quer ser palhaço vou te colocar num circo.
- Mas mãe...
- Cala a boca, menino, antes que eu perca o resto de paciência que me resta.

Era o discurso pronto, de sempre. Eu gostava mesmo é de jogar conversa fora. O Seu Antenor, um velhinho simpático, vizinho de casa, era o meu principal interlocutor. Adorava ouvir suas histórias. E ele queria sempre saber das minhas. Falávamos de tudo: das estrelas, do movimento dos astros, de futebol, dos mecanismos da correia dentada, da teoria da relatividade e da lei da gravidade.
- Você é um incompreendido, garoto.

Eu não entendia direito o que o Seu Antenor queria dizer, quando me dizia aquilo, mas, de certa forma, aquelas palavras me traziam consolo.

Naquela manhã, mamãe chegou na escola cheia de pressa. Eu já estava a sua espera na sala da diretoria. Pelo ar grave, percebi que, dessa vez, não sairia barato. Quando nos encontramos ela me fez um aceno e me fuzilou com o olhar. Se aproximou, me deu um beijo na testa e apertou forte meu braço direito. Sussurrou alguma coisa que eu não consegui ouvir, porque bem naquela hora, na janela do diretor, pousou um bem-te-vi e começou a cantar. E eu adoro pássaros, e eu adoro bem-te-vis. São simpáticos. Dentro da sala, era um blá-blá-blá que não terminava mais.
- Entendo os problemas que você passa tendo um filho como ele, mas ele extrapolou todos os limites do bom senso e do convívio social.
Opa! Estão falando de mim.
Minha mãe aumentou o tom de voz:
- Você está insinuando que meu filho é um assassino em potencial? Foi coisa de criança, não percebe?
O diretor aumentou mais ainda.
- A permanência dele na escola é insustentável. Sendo assim, peço que a senhora procure outra instituição de ensino.
Minha mãe abaixou a cabeça e consentiu. E o caso foi dado por encerrado. Nem se despediu. Ela me pegou pela mão esquerda e foi me puxando para fora da sala e em seguida para fora do colégio. Notei que no canto do seu olho direito, uma lágrima, tímida, escorria bem devagar.
- O que foi mãe?
- Nada, filho. A conversa vai ser lá em casa.
Estava trêmula, com os olhos baixos e humilhados. E senti um ódio em suas palavras.
Entramos no carro. Passados alguns minutos, não me contentei e puxei assunto de novo.
- O que o diretor disse, afinal?
- Que você não pode mais estudar nessa escola. E sabe por que? Porque jogou uma cadeira no seu coleguinha, que foi para o hospital com suspeita de traumatismo craniano.
- Ah, mas o Cabelo bem que merecia...
- Quieto! Bico calado! Não é prá você falar, eu que falo agora - um silêncio - O que faço com você? - e começou a chorar - Vamos, me responda, você não é sabichão? Que tem resposta prá tudo?
Continuou dirigindo, entre soluços. Chorava mais e mais. E me senti muito mal em ver mamãe daquele jeito. A culpa era toda minha.
- Tenho vontade de te bater até você sangrar...
Senti medo. Mas alívio. Porque se ela me batesse, ao menos a culpa estaria um pouco eximida. Deu três murros no volante, parou o carro na guia à direita, baixou a cabeça e chorou. Até secar. E continuamos o caminho para casa. E nada mais foi dito. E percebi que demoraria muito tempo para mamãe nunca mais chorar daquele jeito. Lá prá quando eu tivesse uns 18, 19 anos, quem sabe?

quinta-feira, 19 de março de 2009

Mãos

Quando eu olhava para ele, só via uma mão. Na verdade, duas mãos. Um par de mãos perfeito. Tinha os dedos longos e grossos, mas não grosseiros, e o espaço entre eles era simétrico. Pêlos na medida certa, unhas bem cortadas, rente a ponta do dedo, que era levemente arredondada. As linhas da palma da mão era bem desenhadas, fundas e claras. Eram mãos expressivas.

Tudo que fazíamos tinha que ter a mão dele. Adorava passear no parque, porque as mãos dele ficavam segurando firme as minhas. Tomar sorvete, refrigerante, vinho, vitaminado ou cerveja, era sempre uma experiência incrível. Ficava fitando o movimento das mãos: os dedos se aproximando do copo, fazendo pressão contra a parede suada daquele copo, se unindo e finalmente fazendo uma pequena força para sustentar o recipiente e leva-lo a boca. E aí as mãos ficavam próximas da boca. E eu queria que a cena se congelasse. Mãos e boca, que mais um homem precisa ter nessa vida?

Não gostava de ve-lo jogando futebol. Nada contra o jogo, pelo contrário, até me agrada bastante. Mas em se tratando daquelas mãos, elas não poderiam ficar abandonadas ao lado do calção por 90 minutos. As mãos no futebol ficam bobas, em segundo plano. Gostava mesmo é de vôlei. Nessa modalidade sim as mãos eram protagonistas. E ficava na arquibancada a observar o movimento das mãos dele. Os sets passavam sem que eu percebesse e eu sempre queria mais.

Mas o que mais gostava era do toque daquelas mãos. Era pesado na medida certa. Os dedos de movimentavam com fluidez, mas sem nervosismo. Tinha carinho e desejo. E as mãos passeavam por todo o meu corpo. E por dentro dele também. E era simplesmente fantástica aquela sensação.

Aquelas mãos precisavam de um seguro exclusivo, para protege-las, mante-las intactas. Tentei convencê-lo a fazer uma previdência para aquelas mãos. Para quando fossem envelhecendo, fossem ficando cansadas, vai que elas necessitem de algum reparo?

Ele não gostou nada da ideia. Me acusou de maluca e me deixou de mãos abanando. Tive direito a um último pedido: peguei uma lata de tinta e pedi que ele mergulhasse aquelas mãos sagradas dentro, pressionando-as sobre uma folha de papel.

Não tenho mais as mãos. Tudo que tenho são lembranças e aquela imagem. E quando olho para aquelas mãos marcadas no papel, bate uma saudade.

quarta-feira, 11 de março de 2009

O medo do juízo

Ele gostava tanto dela. E ela dele. Mas nem um, nem outro confessariam tal desatino em sã consciência. Sequer sob pena de serem torturados. Era o irrealizável. E isso tornava aquele sentimento mais interessante ainda.
O proibido é desafiador. E ponto. Mas o irrealizável, além de desafiador, traz uma angustia em sua condição. Uma fatalidade. E a ideia que fica é de que, se concretizado, seria irretocável.

Bobagem?

O que os outros iriam pensar? Ou, pior ainda, o que os outros iriam dizer? Ela vivia num mundo de convenções, no qual a opinião do outro sobre suas escolhas pesava muito. Era quase sempre determinante. Ele tentava escapar disso, mas apenas na teoria. Na prática, era talvez até mais preocupado com as convenções, a moral e as regras.

Eles se encontravam, muitas vezes. Conversavam, poucas.

Aquela situação era insustentável para ela, no entanto, administrável para ele. E ele foi levando. E ela foi sofrendo. E ele foi negando. E ela foi pressionando. E ele se esquivava. E ela ficou doente. Talvez do coração, talvez da carcaça mesmo. E ele percebeu o quanto era tolo. E aquela situação se esvaiu. E ela trocou de plano. E ele tomou coragem.

Mas aí, então, já era tarde. Deitou, e foi sonhar.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Anedota de uma mulher (in)dependente

Sempre fui uma mulher muito independente. Aos 14 anos arrumei meu primeiro emprego. À revelia, mas só de minha mãe. Meu pai desaprovava, mas no fundo bem que gostava, porque todo mês 10% do meu salário ia para cobrir despesas da casa. Como prestador de serviçoes, ele passou a trabalhar cada vez menos. Minha vontade era colocarr uma mochhila nas costas, mandá-lo à merda e cair na vida. Mas ainda não era a hora.
Fiz uma poupança com a grana que juntei dos 14 aos 18 anos e consegui comprar um carro no dia do meu aniversário de 19 anos. Era o símbolo da independência. Mas eu queria mais.
Ingressei na faculdade, mas continuei trabalhando e, agora, ganhando um pouco melhor. Aos 20 anos atingi o ápice da subsistência para uma recém-saída da adolescência: fui morar sozinha. E totalmente auto-suficiente. Aluguel, internet, água, luz, telefone: tudo por minha conta e risco. Mas eu queria mais. Me sentia vazia e inútil, por vezes, só. Ainda que cercada de gente, só.
E veio a depressão. Cheguei a achar que era isso o que faltava para que eu chegasse a plenitude da independência. Afinal, uma mulher independente tem problemas que precisa resolver sozinha, sofre pressões, passa por estresse, que culminam em depressão.

Mas eu queria mais.

Um dia tomei várias cartelas de calmantes e deitei. Tudo ficou preto e, depois, azul. E senti uma paz. Acordei, vomitei e fui passear. Foi então que eu o encontrei. Da troca de olhares para a cama foi um piscar de olhos, afinal, eu era uma mulher independente e bem resolvida, e deveria sanar minhas vontades sem sentir culpa. Começamos a namorar e decidi chamá-lo para morar comigo, situação aceita apenas por mulheres independentes. A maioria quer casar, véu, grinalda e toda pompa e circunstância. Mas eu, não.
Aos poucos fui gastando cada vez mais tempo na cozinha do que na academia, mais tempo lavando e passando roupa do que indo ao cinema, mais tempo varrendo a casa do que trabalhando fora. E me transformei numa típica dona-de-casa, situação muito transgressora, pois mudei radicalmente e mudanças radicais só são aceitas por mulheres independentes. Portanto, tudo certo.
E ele foi ficando áspero comigo. Não me trazia mais flores, nem dizia elogios, só quando eu dava algo em troca.
Aquela relação estava se degradando e eu, uma mulher independente, não poderia ficar de braços cruzados.
Numa noite, esperando que ele chegasse do trabalho, preparei um jantar, comprei vinho, rosas, perfumei a casa e a nossa cama.
Ele entrou, eu fui recebê-lo e receb, em troca, uma bordoada bem no meio da cara. E decedi que, independente de qualquer coisa, aquele era o meu lugar.