terça-feira, 7 de abril de 2009

Sobre transtornos em qualquer idade

Chamaram mamãe de novo no colégio. Não conseguia fazer aquele exercício de matemática e a professora perdeu a paciência comigo, depois que perguntei pela 14ª vez, porque o delta era simbolizado por um triângulo.
- É apenas um símbolo.
- Mas poderia ser um quadrado então, não poderia?
- Já chega! - gritou, e num sussurro - Você é um garoto estranho mesmo...
Todos riram. Me senti humilhado. Como quando você erra o chute na cara do gol, depois de um passe perfeito. Ou quando vai tirar a garota prá dançar e recebe uma negativa na frente de todo mundo. O Cabelo, que por sinal era a pessoa mais desprezível do colégio, sentava bem ao meu lado. Veio e falou, baixinho:
- Imbecil!
E cuspiu na minha cara.
Perdi as estribeiras. Levantei, peguei minha cadeira e joguei na cabeça dele. Era para machucar. E machucou. Ele desmaiou e os cabelos se tingiram de vermelho em poucos minutos. Fiquei parado, atônito. E fui levado para a diretoria.

Duas vezes por semana, mamãe era chamada na escola. Eu tinha DDA (Distúrbio do Déficit de Atenção ou TDA (só que aí troca Distúrbio por Transtorno), mas não era com Hiperatividade, e ninguém me entendia nunca. Tinha dificuldades em me concentrar naquela aula chata de matemática ou no falatório que era a aula de História. Era o professor começar: "Antonio Conselheiro foi como ficou conhecido na Guerra de Canud..." e logo já pensava que tinha futebol às 16 horas no campinho perto de casa e que o Mauricio ia me ligar prá gente andar de bicicleta e que a Julia topou tomar sorvete comigo depois da aula. Coisas tão mais úteis do que aquela história de Guerra que teve até Conselheiro e Canudo no meio. Minhas perguntas eram sempre desprezadas pelos meus colegas e eu era sistematicamente ridicularizado pelos professores.

- Você tem que tomar jeito, menino - era o que minha mãe sempre dizia
- Mas o professor acha que estou tirando sarro, mas, mas é dúvida mesmo...
- O professor sempre tem razão. Dizem que seus colegas sempre riem do que diz, se quer ser palhaço vou te colocar num circo.
- Mas mãe...
- Cala a boca, menino, antes que eu perca o resto de paciência que me resta.

Era o discurso pronto, de sempre. Eu gostava mesmo é de jogar conversa fora. O Seu Antenor, um velhinho simpático, vizinho de casa, era o meu principal interlocutor. Adorava ouvir suas histórias. E ele queria sempre saber das minhas. Falávamos de tudo: das estrelas, do movimento dos astros, de futebol, dos mecanismos da correia dentada, da teoria da relatividade e da lei da gravidade.
- Você é um incompreendido, garoto.

Eu não entendia direito o que o Seu Antenor queria dizer, quando me dizia aquilo, mas, de certa forma, aquelas palavras me traziam consolo.

Naquela manhã, mamãe chegou na escola cheia de pressa. Eu já estava a sua espera na sala da diretoria. Pelo ar grave, percebi que, dessa vez, não sairia barato. Quando nos encontramos ela me fez um aceno e me fuzilou com o olhar. Se aproximou, me deu um beijo na testa e apertou forte meu braço direito. Sussurrou alguma coisa que eu não consegui ouvir, porque bem naquela hora, na janela do diretor, pousou um bem-te-vi e começou a cantar. E eu adoro pássaros, e eu adoro bem-te-vis. São simpáticos. Dentro da sala, era um blá-blá-blá que não terminava mais.
- Entendo os problemas que você passa tendo um filho como ele, mas ele extrapolou todos os limites do bom senso e do convívio social.
Opa! Estão falando de mim.
Minha mãe aumentou o tom de voz:
- Você está insinuando que meu filho é um assassino em potencial? Foi coisa de criança, não percebe?
O diretor aumentou mais ainda.
- A permanência dele na escola é insustentável. Sendo assim, peço que a senhora procure outra instituição de ensino.
Minha mãe abaixou a cabeça e consentiu. E o caso foi dado por encerrado. Nem se despediu. Ela me pegou pela mão esquerda e foi me puxando para fora da sala e em seguida para fora do colégio. Notei que no canto do seu olho direito, uma lágrima, tímida, escorria bem devagar.
- O que foi mãe?
- Nada, filho. A conversa vai ser lá em casa.
Estava trêmula, com os olhos baixos e humilhados. E senti um ódio em suas palavras.
Entramos no carro. Passados alguns minutos, não me contentei e puxei assunto de novo.
- O que o diretor disse, afinal?
- Que você não pode mais estudar nessa escola. E sabe por que? Porque jogou uma cadeira no seu coleguinha, que foi para o hospital com suspeita de traumatismo craniano.
- Ah, mas o Cabelo bem que merecia...
- Quieto! Bico calado! Não é prá você falar, eu que falo agora - um silêncio - O que faço com você? - e começou a chorar - Vamos, me responda, você não é sabichão? Que tem resposta prá tudo?
Continuou dirigindo, entre soluços. Chorava mais e mais. E me senti muito mal em ver mamãe daquele jeito. A culpa era toda minha.
- Tenho vontade de te bater até você sangrar...
Senti medo. Mas alívio. Porque se ela me batesse, ao menos a culpa estaria um pouco eximida. Deu três murros no volante, parou o carro na guia à direita, baixou a cabeça e chorou. Até secar. E continuamos o caminho para casa. E nada mais foi dito. E percebi que demoraria muito tempo para mamãe nunca mais chorar daquele jeito. Lá prá quando eu tivesse uns 18, 19 anos, quem sabe?