segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O instante

Esse espaço é para ficções, mas hoje estou com vontade de escrever sobre um filme que pude assistir na Mostra Internacional de Cinema esse ano por um acaso: "O futuro", de Miranda July. Na verdade, ele renderia muitos posts, mas quero falar de um aspecto específico que o filme aborda com muita clareza: o instante. Mas não é qualquer instante. É o instante que antecede um momento irreversível. No filme, o personagem "congela" um segundo antes de quando sua mulher ia dizer que estava apaixonada por outra pessoa e que ia deixá-lo. Comecei a pensar nos instantes que antecedem uma má notícia, uma virada na história (um turning point, diriam os roteiristas) ou mesmo uma tragédia. Parece que, por um segundo, ou menos que isso, tudo se congela. Fica paralisado. E o mais maluco é que não há como mudar. Esse segundo é como um respiro, mas a coisa vai acontecer de qualquer maneira. Não há como evitar, reverter. Não há.
Quando um prédio vai ser implodido. Observe: depois de acionado o dispositivo, ele fica intacto, durante alguns milionésimos de segundos, para depois despencar sem dó, de uma só vez.
Nas histórias em quadrinhos isso também acontece. Em Frank Miller e seus quadros cheios de sexo, sangue e escuridão também mostram claquetes desse instante que antecede a destruição.
Nos desenhos animados, o coiote sempre fica suspenso no ar antes de cair de um precipício.
Quando algo muito drástico aparece diante de nós, repare, o acontecimento pode se concretizar ou ser interrompido, nos dois casos é lugar comum falar ou ouvir: por um triz. Por um triz que fulano escapou. Ou por um triz que não conseguimos evitar o pior.
Nos dois casos, ficamos com o quase.
Às vezes pensamos que por um segundo a coisa x aconteceu, a y deixou de acontecer, você se desencontrou, você se desencantou...enfim. E essa sensação de que por muito pouco poderíamos ter mudado o rumo das coisas é tão ilusória quanto infantil, na medida em que você nega que não é possível ter controle sobre tudo. Há escolhas e há fatos. Temos que procurar fazer as escolhas na medida em que os fatos acontecem. Não dá para prever os resultados. Há como escolher e viver.
No filme, é isso que o personagem tenta, em vão, fazer. Ele sente o silêncio que antecede o fim e, para evitar esse fim que não aceita, ele para tudo.
Mesmo que hipoteticamente isso fosse possível, não é algo inteligente a se fazer. Porque o fato está ali, pronto para acontecer e vai acontecer e, mais que isso, tem que acontecer. A partir do acontecimento, você precisa fazer suas escolhas. A vida é movimento, já diria um amigo meu e a Pina Bausch. Sempre que fizer com que esse movimento te leve para frente, vai conseguir perceber que realmente fez escolhas. Certas ou erradas? Não sei. Não dá para saber, não dá para prever. Não importa como as coisas vão se ajeitar. Não importa se, como no filme, o passado vai voltar e você vai resolver que, na verdade, sempre foi o que você quis ontem, hoje e amanhã. O que importa é que já não é mais a mesma coisa. Porque a vida é movimento, porque as pessoas mudaram, as estações mudaram. E mesmo que você sinta que algo voltou, isso é ilusório. Ele se destruiu em um instante para ser construído do zero. Ainda que sejam os mesmos tijolos, eles estarão configurados e serão dispostos de maneira diferente. Isso é vida! E por isso, pensando no instante, no momento, e no filósofo dos tempos modernos, o professor e tio torto Vitti tem muita razão em sua frase lapidar: "A vida é momentos!"

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Desvio

Todos os dias, ele dizia "Bom dia!". Ela, sempre muito sorridente, respondia prontamente. Pelo tom de voz, ele conseguia saber se ela estava triste, aborrecida ou feliz da vida. Ele a amava em segredo. Sabia quem eram seus amigos, seus gostos, seus horários e até mesmo a última compra parcelada que ela havia feito.
Ela era uma mulher sozinha, mas não solitária. Sempre estava cercada de gente. Tinha uma vida noturna agitada, sempre recebia amigos em jantares no seu apartamento. Todos os dias saía logo cedo e passava apressada por todo lugar, como que perdendo hora para um compromisso que nem havia marcado ainda.
Ela tinha urgência em viver. Ele, em contemplar.
Mas ela sentia falta de ter alguém que cuidasse dela, que a amasse, que dividisse momentos de delicada intimidade. Ele era o candidato. Mas isso era uma coisa só dele. Ela nunca saberia, por uma opção dele.
O brilho contemplativo se apagaria em um minuto se aquela devoção se fizesse pública.

Às vezes, ela descia para fumar um cigarro. Ele então se deleitava em companhia silenciosa. Cada tragada era tamanha fonte de prazer, que, por vezes, ele emitia algum grunhido. E ela, simpática, dizia: "que foi?" - e ria. E ele: "nada..." - num sussurro.

Um dia, chegou uma carta. Cheirava à perfume importado. Masculino. O remetente confirmava a suspeita: era um potencial adversário. Reconheceu o nome do rapaz, que já havia ido visitar a garota um ou duas vezes.

Não teve dúvidas: picou em mil pedaços e jogou fora.

Alguns dias depois, chegaram flores. E ele procedeu da mesma forma: jogou fora.

Mais alguns dias e o rapaz foi até o prédio. Perguntou pela jovem. Era ele quem estava na portaria aquele dia. Que sorte! E foi seco:

- Ela não mora mais aqui. Mudou-se essa semana.
- Sabe para onde ela foi?
- Não tenho a menor ideia.
- O sr. chegou a ver se ela recebeu uma carta e flores minhas?
- Sim. Eu é quem estava aqui. Ela não quis nem pegar. Jogou tudo fora.
- Sério?
- Sim.
- Vadia.
E o porteiro sussurrou:
- Trouxa!

E ela chegou, um pouco mais tarde e tudo estava ao normal. Afinal, nada demais tinha acontecido. A vida dela continuava assim, sem grandes acontecimentos. Ela estava decepcionada, mas não se deixava abater. Depois de uma semana sem notícias do rapaz, ela pensou: "Ah, laissez-aller, laissez-passer". No dia seguinte, ela saiu como todos os dias, respondeu ao bom dia, sorrindo. E esperando mais uma carta que nunca chegou, mais uma flor que nunca chegou, mais um amor que nunca chegou. O que restava era a adoração, fiel, mas que ela também nunca saberia existir.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Gases, menstruação e má digestão

Aos 7 anos

- Mamãe, tá doendo aqui - aponta para um ponto entre o estômago e o coração
- Ah, filha, sei lá. O que você fez? - indagou
- Nada, mãe.
- Devem ser gases...
- Não, mãe! Tá dando pontada aqui - apontou, insistente, para o peito
- Ai, meu Deus! Então vamos ao médico.
Começou a chorar:
- Tem médico de coração?
A mãe olhou, confusa:
- Filha, o que você tem?
- É que o Pedrinho, o Pedrinho...eu fiz um desenho pro Pedrinho, mas ele riu, amassou e jogou no lixo - disse aos prantos.
Comovida, a mãe abraçou a filha:
- Ah, minha filha! Os meninos são bobos mesmo. E o Pedrinho mais ainda, por não perceber a garota legal que você é. Vai passar.

Aos 14 anos

- Oi, mãe - entrou na cozinha cabisbaixa - nem vou almoçar hoje.
- O que foi, minha filha?
- Eu tô com muita dor aqui - e apontou a região entre o estômago e a barriga.
- Não vai ficar menstruada, filha?
- Não! - respondeu, colocando a mão no peito.
- Mas ta doendo aí onde você colocou a mão?
- Também...
- Ah, filha, mas aí são os seios...normal, estão crescendo, eles doem. Eu tive dores até os 16 - teorizou a mãe.
- Não, mãe! É o ar que falta. E aí dói aqui, aqui mais embaixo, aqui do lado...
- Acho melhor a gente procurar um médico.
A garota hesitou. Como a maior parte dos adolescentes, não gostava de ter essas intimidades com a mãe, mas acabou caindo no choro:
- É o Pedro, mãe. Acredita que a gente foi junto para aquela festa e ele nem olhou na minha cara hoje.
- Ah, filha, ele não deve ter visto - disse a mãe, tentando amenizar.
- Ele viu sim, mãe. E sabe por que não me cumprimentou? Porque tava andando de mãos dadas com outra garota. Eu quero morrer.
Com compaixão, a mãe disse:
- Ai, filha...os garotos são assim mesmo. Eles demoram mais para amadurecer do que as meninas. Isso é normal. Ele é que é bobo por não estar com uma garota legal como você. Vai passar.

Aos 28 anos

- Nossa, mãe. Tá difícil hoje...
- O que foi, minha filha?
- Nossa, com o coração apertado. Tá difícil de respirar.
- Comeu alguma coisa que não caiu bem?
- É, pode ser mesmo. Estou um pouco enjoada...
- Vixi, filha, quando eu fiquei grávida de você sentia isso... - disse a mãe, toda animada para ser avó.
A filha, com um tom de voz sério, cortou o barato da mãe:
- Eu não estou grávida.
- É, filha, então não sei...Você está precisando de alguma coisa?
- Eu queria o Pedrão de volta, mas isso ninguém pode fazer - e desabou no choro
- Ai, filha. Ainda esse cara?
- É, mãe. Ele não quis nem falar comigo. Disse que não quer me ver e que é melhor assim.
Pegou a cabeça da filha e colocou no colo, como quando era criança:
- Ah, minha filha! Os homens parecem meninos, às vezes. E o Pedrão mais ainda, por não perceber a mulher incrível que você é. Vai passar.

Conclusão: Gases, menstruação, má digestão e coração partido provocam os mesmos sintomas. E essas dores e os conselhos (verdadeiros, mas sempre protocolares) não mudam em tempo algum.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O caminho das borboletas

"O novo e o velho coexistem para que haja equilíbrio" - ela escreveu em seu pequeno caderno de viagens o que havia escutado em outro idioma no meio da multidão que visitava uma cidade em ruínas. Ficou pensando em seu avô, acamado após ser acometido por uma doença, que fez com que a família voltasse toda a atenção para aquela situação com a certeza de um término sem data marcada. Alguns, que há muito não se falavam, simplesmente porque a vida é assim, passaram a se encontrar quase diariamente, com o objetivo de prestar toda a assistência ao enfermo. A razão não era nada boa: doença. Mas alí havia sim a clara relação do velho com o novo. A doença motivou o resgate de uma referência que se perdeu na volatilidade do cotidiano. O velho dá suporte para o novo e o novo protege o velho, para que ele não esmoreça.
Absorta em seus pensamentos, se percebeu, em algum momento de consciência, que estava sozinha. Respirou fundo para recobrar a calma. Um pouco apreensiva, andou em círculos pela trilha. Gritou algumas palavras que não tiveram eco. Pensou na relação do novo e do velho. Pensou que, mais que o equilíbrio, essa relação seria um caminho.

A borboleta vive nessa relação do novo com o velho. Encapsulada no casulo está o corpo maduro que, na hora adequada, se livra da carapaça e, com asas novinhas, ganha o infinito das possibilidades.

"Devo seguir o caminho das borboletas" -pensou. E em poucos instantes, lá estavam elas, batendo as asas e a conduzindo para uma saída. Pouco importava se era a ideal, a esperada, a única. Mas era a possível naquele momento.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Alô? É o passado

Ficaram alguns meses sem notícia um do outro. Até que ele ligou para pedir uma ajuda: queria mudar de emprego. Da relação tinha ficado uma amizade muito bonita:
- Alô?
- Oi. Sou eu, tudo bem?
Na mesma hora, teve a sensação de ter o seguinte diálogo:
- Alô?
- Oi. Aqui é seu passado.
Achou que estava ficando maluca. Respirou e retomou a conversa:
- Oi. Tudo sim. Que surpresa essa ligação.
Ela tinha saudade dele. Não daquela relação homem-mulher, mas da amizade. Ela queria muito que ele fosse feliz.
- Estou precisando de uma força. Querendo procurar um trabalho melhor. Pensei que você podia me ajudar.
- Mas é claro.
E os dois conversaram. Riram e, no final, a pergunta:
- Mas, afinal, como você está?
- Ah, to feliz, mudei de casa, estou morando com uma garota legal...
Ela ficou muda. Achou que aquele sentimento estava no passado. Sentiu-se mal, tateou a mesa para procurar algo inexistente e acabou puxando uma cadeira.
- Que bacana! Parabéns. Se você está feliz é isso o que importa - disse muito sem graça.
Se despediram. Desligaram. Ela chorou. Sentiu vergonha. Ela não chorava por ainda amá-lo. Isso tinha ficado no passado. Ela chorava pelas escolhas que tinha feito e, agora, se arrependia. Pensou num outro diálogo possível com o passado:
- Alô?
- Oi. É o passado.
- Xô. Não quero mais falar com você, passou...
Mas isso não lhe era possível. O sentimento tinha invadido sem que ela permitisse. Ficou pensando que novamente havia sido preterida para realizar um de seus sonhos. O desejo dela, o que eles tinham planejado, estava acontecendo, mas com outra pessoa. Não era do sentimento por ele que ela tinha saudade. Mas dos planos. Ficou mastigando aquele 15 de julho, quando ele a procurou:
- Acho que poderíamos retomar, não sei...gosto de você. Ainda. Muito.
Ela não o deixou terminar de falar. Estava encantanda por outro alguém e simplesmente desprezou a oportunidade, que diferente da maior parte das vezes, aparecia novamente diante dela.
- É. Estou com outra pessoa. Na verdade, acho que a gente passou.
E agora sofria em pensar que havia feito a escolha errada. Porque o alguém pelo qual ela havia trocado ele, tinha feito a mesma coisa. Ou pior. Ela continuava sonhando as coisas para que outras pessoas realizassem no seu lugar.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Remédio para um coração despedaçado

Um coração despedaçado entrou numa loja onde se vendia tudo que se pode imaginar em busca de conserto. Pegou a senha. A fila estava enorme. Ao chegar no balcão, olhou no crachá do atendente e estava escrito "Bom Conselho". Achou engraçado, um tanto quanto presunçoso, mas seguiu:
- Boa tarde, Seo Conselho, tem algo aí para um coração despedaçado?
- É vejo que o senhor está bem arrebentado. O que foi? Amor platônico, não correspondido, traído...
Interrompeu, pois o Conselho jamais adivinharia o problema daquele Coração:
- Amor não assumido.
- Uma fita crepe?
- Já tentei. Ela cedeu.
- Talvez algo mais forte, um superbonder?
- Vixi, nem te conto...esse me machucou mesmo. Porque colei forte, mas eu não resisti. E quando quebrei de novo, até arrebentou um pedacinho aqui ó - apontei mostrando para o Conselho meu ombro esquerdo.
- Uma muleta pode te ajudar ao menos a andar melhor...
- Também não dá certo. É paliativo e não conserta de vez. E o pior, ficaria mal acostumado.
- hum...cachaça?
- Ai, já tentei também. Me dei mal. Tá vendo esse buraco aqui? - apontei para meu estômago - então, úlcera que não virou cirrose por um triz...
- Entendo... - com certo ar de complacência, mas já sem paciência.
- O senhor não pode vir comigo?
- Eu?
- Sim, o senhor, Seo Conselho? Poderia me dar boas dicas...
- Conselho não se compra, nem se vende. Conselho apenas mostra possibilidades. Ao menos no meu caso, que sou o Bom Conselho.
O coração ficou calado, fitando aquele bom conselho, que tinha um ar intrigado, mas foi certeiro.
- O tempo. A solução para você é o tempo.
Quando fui questionar que não daria para viver daquele jeito, ele me interrompeu:
- Calma! Para seguir nessa jornada você vai precisar de algumas coisinhas.
Virou-se e foi até uma prateleira.
- Uma boa dose paciência para esperar; um potinho de lágrimas, porque uma hora ou outra você vai chorar; inúmeros sacos de risada, para compartilhar com seus amigos e perceber que a vida é boa demais; e um espelho.
- Um espelho?
- Sim, para você olhar sempre e perceber o quão lindo e especial você é. E dessa forma, recuperar o amor-próprio e aí então decidir se ainda quer que a espera te acompanhe ou se ela já pode seguir.
- Mas isso demoraria quanto?
- Depende do quanto vai levar para cicatrizar.

Pegou todas as coisas, passou no caixa e seguiu o caminho, ainda catando os pedaços, que vez ou outra se desprendem do corpo, mas ao menos um pouco mais fortalecido.

terça-feira, 5 de julho de 2011

O homem viciado em términos

Havia um homem que não gostava do início do relacionamento. Ele tinha uma fixação quase orgástica pelo término. E o mais curioso em sua obsessão: ele não tinha culhões para colocar um ponto final. Ele manipulava a coisa toda a tal ponto, que saía como coitadinho e abandonado. Mas tinha controle total da situação e não se envolvia. Tentava fazer as mulheres com quem se relacionava se sentirem culpadas pelo que sentiam. Um bem querer, por exemplo, virava algo maligno. Ciúmes e cobrança. Nada o fazia mudar de ideia. O término era a única certeza na vida dele. Como num ciclo vicioso, ele envolvia, se fazia apaixonável e depois, sem mais nem menos, pulava fora. Como ele dizia, cheio de empáfia: "Ah...aquela? Perdi o interesse".

Isso lhe dava certo ar de complacência diante do mundo. E até um conformismo que nos dá tranquilidade. Ele tinha total controle de todas as relações que estabelecia e sempre sabia o desfecho: o fim. Dessa forma, sofria menos. Ou melhor, não sofria nada.

Sofre quem tem expectativa. A previsibilidade deixa tudo claro e abrevia dúvidas ou eventuais sofrimentos. Mas o outro lado, o que espera, o que aposta, sofria com a frieza com que ele, simplesmente, deixava de considerar. Porque o fim estava posto, antes mesmo de começar.

Todas as mulheres com quem ele se envolvia eram loucas, desequilibradas e, ao menor sinal de um deslize, pronto: ele jogava isso na cara delas, mas de um jeito tão habilidoso que elas não percebiam que estavam sendo apontadas. Elas teriam certeza de que elas mesmas estavam fadadas a serem abandonadas e encerradas dentro da própria loucura. Era muita habilidade!

Ele ia levando a vida com fases sempre finitas. O começo, meio e fim era ininteligível para qualquer ser humano que tivesse metade de um coração. Não precisa nem mesmo ser inteiro... mas para ele era muito claro e definido.

Era mórbido como ele sentia prazer em ver as mulheres descabeladas, se perguntando: o que foi que eu fiz? Ele fazia cara de bom moço e dizia: "Você não fez nada. O problema sou eu". E ria muito. Por vezes calado, por vezes bem alto. Gargalhadas, quando a pobre moça já tinha saído da sua casa, levando debaixo do braço um livro ou camisa que deixara lá, despretensiosamente, num dia de semana.

Passou a anotar, religiosamente, todos os seus términos. Dessa forma, foi elaborando melhor as cenas que criava na sua cabeça e as justificativas para o fim, que se tornavam cada vez mais convincentes. Fez isso com pelo menos 150 mulheres ao longo da vida. Casou-se com algumas, para quem jurou amor eterno diante do padre, mas desde a noite de núpcias sabia a data que terminaria.

Como alguém viciado em términos, ele esperava, ansioso, o dia de sua morte. Sabia que era o fim, mas tinha excitação por saber o modo. Mas ela, implacável, lhe pregaria uma peça. No dia que seria o dia de sua morte, já bem doente, ela não veio. Foi a primeira vez que alguém dava em troca da espera dele, o desprezo. Desesperado, ele chamava pela morte, mas ela não dava a mínima. Ele queria saber onde estava a safada, mas ela não apareceu e condenou o homem viciado em términos a terminar sem fim. Ou como havia deixado terminar todas as histórias de sua vida: com indiferença.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O impulso

Sexta-feira, 10 de abril de 2009, 13h

A Avenida Sumaré, no sentido de Pinheiros, estava impraticável. Como isso poderia acontecer em pleno feriado? Na rádio informavam que um acidente bloqueava duas faixas da avenida. Um atropelamento. Eu seguia de bicicleta no sentido oposto e, movida por uma curiosidade quase mórbida, procurava a tal ocorrência. Quando cheguei, vi um corpo estendido no chão. Sirenes da polícia. Joguei a bicicleta no canteiro e fui mais perto. Os olhos estavam abertos, atônitos. Eles olhavam para mim. Os ossos, estraçalhados, faziam com que o tronco tivesse virado uma massa amorfa que abraçava o asfalto, entre duas faixas da avenida. Ele vestia camiseta branca. Acho que era Hering. A perna esquerda estava estirada, o joelho direiro levemente dobrado para fora. Ele vestia um jeans bem básico. Tipo Lee ou Levi's. Os peritos chegaram. Não tardou muito para o IML chegar também.
- O que foi?
- Suicídio. Aproximadamente 27 anos.
- Qual o nome dele?
- Não sei. Está sem documentos.
Olhei de novo para aquele rapaz. Cabelos castanhos, na altura dos ombros. Barba por fazer.
- Como ele pulou, o senhor sabe?
- Pela forma com que caiu foi de costas.
Olhei para o corpo no chão. Depois, olhei para cima. Muito alto era o viaduto da Avenida Dr. Arnaldo... Olhei novamente para o corpo. E o rosto. E enxerguei Jesus Cristo. Que loucura. Coloquei a mão na testa. E voltei a olhar. O que tanto afligia essa alma perturbada? Quem ele deixou para trás? Quem vai chorar por ele? Por que teria se matado justamente numa Sexta-feira Santa? E logo depois do almoço!

Domingo, 12 de abril de 2009, 9h

Domingo de Páscoa. Eu queria estar com a minha família, mas eu estava trabalhando. Eu passava pela Avenida Prestes Maia, um pouco depois da passagem subterrânea Tom Jobim, e vi um ônibus, na via de acesso para a avenida, na diagonal. Na traseira do coletivo, um carro com a frente completamente destruída. Era o que sobrou de um Celta preto. Parei um pouco adiante. Desci. A faixa de isolamento já separava o local da curiosidade dos populares, mas eu consegui entrar. Fiquei parada por alguns segundos tentando entender como aquilo tinha acontecido. Como um carro poderia entrar com tamanha violência. As portas estavam abertas e no chão alguns sinais de que o socorro havia passado por ali um pouco antes. Pensei: "Não há mais ninguém no carro e todos devem estar recebendo atendimento". Me aproximei e o que vi me causou primeiro estranheza, depois asco e, por fim, horror. O banco do passageiro foi violentamente invadido pela quina traseira do ônibus e, nesse cenário, era possível ver o que sobrou da frente de um carro misturado com o que sobrou de uma pessoa. Ou melhor, do que um dia foi uma pessoa. Custei acreditar. Tive que contemplar aquela cena terrível para que eu pudesse acreditar. Eu podia ver metade do rosto. O olho estava aberto. Assustado. O braço esquerdo largado com a palma da mão para cima. Era moreno. E tinha barba. Tive vontade de chorar, mas fiquei tão chocada com a revelação que as lágrimas não saíram.
- Onde estão os outros, policial?
- Foram levados ao pronto socorro. Eram cinco. Suspeita de embriaguez...
- Tá certo. Você vai encontrar sua família?
- Por que?
- Porque hoje é Páscoa. Se for encontrá-los, diga que mandei votos de um bom renascimento.
- Obrigada. Para sua família também.
Fiquei pensando que queria estar com a minha família. E isso, é claro, inclui os meus amigos que formam a família que a gente escolhe. Mas estava só. Pensei que era Páscoa e que isso significava a ressurreição. Será que ele ia renascer em outro plano? De onde estaria voltando? De uma festa que durou toda a madrugada? Será que ele quis estar ali, no banco do passageiro, ou simplesmente aconteceu? E os que ficaram, será que iriam renascer para o que a vida tem de bom?

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Duas mortes. Ambas movidas pelo impulso. Mas um de vida e outro de morte. O rapaz que pulou do viaduto queria fugir da vida, porque, por uma ou diversas razões que não interessam a mim nem a você, caro leitor, ela tinha ficado pesada demais para ele. E o contrário da vida é a morte. Simples assim. O rapaz que morreu no acidente de carro buscava a vida. Queria viver tudo, cada instante, com o máximo de gozo momentâneo que pudesse suportar. E na ânsia de buscar mais vida, acabou prepotente, e em um vacilo, encontrou a morte. Mas era vida que ele buscava. Me arrisco a dizer que essa é a única diferença. Porque nas duas histórias, invariavelmente, falamos de dois suicidas.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Gênesis

A Bíblia diz: "No princípio era o verbo, e o verbo se fez carne e habitou no meio de nós". Foi mais ou menos assim que aconteceu. Ele precisava ser criado de novo, porque havia se tornado uma pessoa digna de pena. E Deus, em sua criação, só criou a pena para as aves. Essa outra pena era criação dos homens...

Deus disse: "Faça-se a luz!" Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou a luz de dia. E as trevas de noite: foi o primeiro dia.

Ele estava péssimo porque tinha levado um baita pé na bunda da mulher por quem tinha brigado com todas as pessoas que o admiravam. E o agravante: na escadaria da igreja. Quanta humilhação. Tudo que ele queria era esquecer. Saiu com várias garotas. Algumas interessantes, outras nem tanto. Foi quando ele viu a perfeita sobreposição do preto sobre o vermelho na pista de dança. Era o vestido preto e os cabelos vermelhos que balançavam ao som de qualquer coisa que nem importava tanto assim. Tudo ficou escuro. Ele nunca tinha visto nada igual e não titubeou em ir ao encontro da luz, que emanava do rosto doce daquela mulher. Era a pedra fundamental para o recomeço.

Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. E chamou o firmamento céu. Deus disse: "Que as águas que estão debaixo dos céus se juntem em um mesmo lugar e apareça então o elemento árido". Deus chamou o árido de terra e o ajutamento das águas de mar: foi o segundo dia.

Ele se sentia especial ao lado dela. E a fazia se sentir da mesma forma. Mas ele para ela, ao menos naquele momento, era uma estrela. E ser uma estrela não é tão especial assim. Afinal, há tantas no céu. Para ele, a mulher dos cabelos vermelhos, que permanecia tão enigmática, seria a lua, não fosse pela alegria, que a deixava mais parecida com o sol. Mas isso pouco importava, porque em ela sendo o sol e a lua, ele teria 24 horas para ficar em sua companhia. A dissonância entre o desejo e a realidade começou a aparecer cada vez mais.

Deus disse: "Produza a terra plantas, ervas que contenham semente e árvores frutíferas que dêem fruto e o fruto contenha a sua semente": foi o terceiro dia.

Um queria que aquele encontro do acaso rendesse frutos. O outro pensava ser uma semente que poderia ou não germinar. Mas seria necessário o tempo para frutificar e colher. Ela decidiu que, independentemente do que ia acontecer, ia semear. Passou a aceitar aquelas raízes se mostrando cada dia mais fortes, mais densas, mais enroladas. Ele tomava, devagar, as rédeas da situação. Se abriu, mostrou seus medos e aflições. E também seus anseios e sonhos. Como numa simbiose, ela se embriagou do que vinha das entranhas dele: primeiro a seiva bruta, depois a elaborada.

Deus disse: "Façam-se luzeiros no firmamento para separar o dia e a noite, para que sirvam de sinais e marquem o tempo, os dias e os anos": foi o quarto dia.

Ele pensava nela dia e noite e se sentia fortalecido cada dia mais. Recebia mimos de uma mulher especial, que o tornava finalmente um ser amado. Estava se reconstruindo. Mas em só receber, esqueceu-se de dar. E ela foi ficando tão frágil quanto uma lua minguante. Restava ainda o sol. Mas a lua, que carrega certa dose de mistério e melancolia, ele não enxergava mais nela. Era tanta luz que ele ficou ofuscado. Sem mistério foi perdendo devagar o interesse. Mas o esforço dela para agradá-lo ainda surtiria efeito.

Deus disse: "Pululem as águas de uma multidão de seres vivos e voem aves sobre a terra, debaixo do firmamento dos céus. Futificai e multiplicai e enchei as águas do mar e a terra": quinto dia.

Na tentativa de resgatar o instante passado, ela passou a fazer as vontades dele. Todas elas. Mas em alguns momentos, extrapolava, perdia a linha. Ela não comprava uma garrafa do uísque preferido dele, por exemplo. Ela comprava pelo menos três. E 8 e 12 anos que nada. Era, no mínimo, maior de idade. A extravagância dela atraia ele. E ele achou que estava apaixonado de novo. E sentiu medo do que estava frutificando. Ficou aflito em ter seus galhos podados, seus frutos retirados e pisoteados por alguém sem coração. E começou se fechar àquilo que nascia de tão bonito entre os dois.

Deus disse: "Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selvagens. E façamos o homem a nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre todos os animais que habitam a terra. Deus criou o homem a sua imagem. Criou o homem e a mulher: sexto dia.

Não levou muito tempo para discernir as coisas ao seu modo. Era um novo homem. Ela tinha sido simplesmente a responsável pela criação desse homem seguro, amado e feliz. Mas as tentativas impulsivas de demonstrar seu apreço àquele novo e admirável homem acabaram um pouco atrapalhadas. O ego tão inflado dele acabou se tornando maior do que o que ela representava. Na verdade, ela passou a ser para ele o significado de uma mudança. E para mudar de vez, teria que deixar até a razão do seu renascimento para trás. Ele passou a ser para ela um objeto de desejo sobre o qual queria ter o controle que um dia tivera, mas não tinha mais. Ele agora caminhava pelas próprias pernas. Ela estava perdida em uma paixão que criou vida própria. E não era a nova vida dele. Nem dela. Era um sentimento que, de tão forte e não vivido até que se esgotasse, criou vida própria. E deveria ser degustado, vivido, contemplado. Mas não foi.

Tendo Deus terminado a obra que tinha feito, descansou: sétimo dia.

O sentimento descansa em algum lugar dentro dos dois. Mas ele, com certa dose de egoismo, quer mesmo continuar olhando para o homem em que se transformou com a ajuda dela. Ela procura em toda pesssoa com quem se envolve uma lembrança que nem teve ao menos tempo de ter dele. Uma semana durou aquela paixão que para um significou libertação e para o outro prisão. Mas isso não foi criação de Deus. Isso é coisa dos homens.

Homenagem a uma história de paixão tão sincera quanto triste que ouvi um dia desses, por aí. Deixo apenas registrado que ela, embora ainda tendo a ferida exposta e aberta, vai cicatrizar. Ele evitou ficar ferido pelo medo de passar o que já havia passado. Mas devemos nos lembrar: nem as histórias, nem as pessoas são iguais.

domingo, 22 de maio de 2011

Quando o amor vira nojo

Quando o amor acaba (ou se transforma, como preferem dizer os mais otimistas)ele pode virar resignação, culpa ou nojo. A transformação do amor estava começando e, embora com forte resistência, se estabelecia como verdade irreversível.

Há uma fábula que expressa essa transformação. Uma raposa que queria pegar uvas em uma videira e não conseguia. Uvas suculentas. E simplesmente, quando desistiu, disse que elas estavam verdes. Arrumou uma desculpa para se conformar com o fato de não ter conseguido as tais uvas. Mas elas não estavam verdes. Elas estavam ótimas para o consumo. Foi a forma que ela conseguiu, não esquecer, mas aceitar, não sem os sentimentos que o fracasso provoca, que não tinha conseguido pegar as tais uvas.

Mas havia outra raposa que queria pegar as uvas. E conseguiu pegar uma ou outra, mas o cacho todo ela nunca conseguiu e virou chacota de outras raposas que cobravam potência e sucesso no objetivo. Ficou a vida toda se martirizando por ser supostamente um fracasso na arte de surrupiar umas uvas. Não se perguntou uma única vez sequer se as uvas estavam realmente suculentas. Ou ainda, se elas se colocavam como inatingíveis, permanecendo nos locais mais altos das videiras, de propósito. Ou por fim, não de perguntou que raios as outras raposas ficavam metendo o bedelho nas vontades dela. Deveria ter mandado todas catarem uvas ou coquinhos. Mas não! Tomou para si o fracasso de toda uma plantação... A culpa era toda dela, a raposa "loser".

As uvas estavam verdes. Uma outra raposa esperou pacientemente o tempo necessário até que elas amadurecessem. Nesse tempo, estabeleceu uma relação até de intimidade com as uvas, que tinham a maturação muito desejada e acompanhada diariamente por aquela raposa, que, com o chegar do tempo certo, passou a observar - alertada por outras raposas - que aquele cacho de uva estava se disponibilizando para outras, embora tivesse feito um trato de que seria dela. A raposa não deu ouvidos e se esforçou para alcançar as uvas, que, olhadas de baixo, pareciam muito suculentas. Maduras. Ao pegá-las e, prestes a devorar com muito apetite uma a uma, viu que a parte de cima delas estava podre. De lá saíam bichos que ela nunca tinha visto, que a parte aparentemente saudável havia escondido. Teve nojo. Depois se sentiu enganada. E acabou por vomitar toda a espera nas uvas, que ficaram encobertas por aquela gosma ressentida. E viraram adubo.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O expulso

Ele colecionava conquistas. Antes se sentia inválido e rejeitado. De repente, como num passe de mágica, passou a ser o conquistador. As mulheres caíam aos seus pés. Ele passou a se sentir desejado e amado. Mas eram relações superficiais. Não passavam de algumas saídas. Era o que alimentava a sua frágil e recém conquistada segurança. E que o tornava ainda mais covarde.

Continuava vazio. Sempre vivera daquela forma. O destino o levou até aquele momento. Ele não teve capacidade, em toda a sua vida, de fazer uma escolha sequer. Até as decisões mais importantes, que pareciam terem sido opções dele, eram circunstanciais, fruto de situações inevitáveis. Era justamente a falta de opção. Ele se deixava levar. E em se deixando levar, nunca havia vivido algo verdadeiro. E passara a vida inteira na tentativa de mostrar para os outros que estava conseguindo ser uma pessoa realizada.


Naquele momento de alta cotação no mercado de relacionamentos, passou a investir no sexo diversificado. Chegou a acreditar piamente que a rotatividade da cama dele iria resolver os problemas que carregava desde o final da adolescência. Quiçá, desde a infância, com uma mãe autoritária e superprotetora.

Mas, com o tempo, aquele vazio não passava. E o fato de, na verdade, ele nunca ter gostado nem dele mesmo, passou a ficar cada vez mais forte. A única verdade é que ele não se aceitava. Tentava, ao se deixar levar, se expulsar de si mesmo. Tendo o destino como o responsável pela sua vida, tirava das suas costas o peso de qualquer decisão.

Foi percebendo que não estava feliz. Não era e nem nunca tinha sido feliz, nem por um instante. A busca o acompanhou por toda a vida. Apenas no leito de morte teve sua revelação. Naquele lugar, decidiu morrer. A morte, ao que parece, não é algo que decidimos. Mas nesse caso aconteceu. E, já morto, percebeu que sua primeira e única opção em vida tinha sido mais uma vez motivada pelas mesmas razões de suas não escolhas: pelo desejo de se livrar de si mesmo.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

No tempo da delicadeza

Os dois se despediam. Era a última vez que se falavam, ao menos na condição de par. De namorados transformariam-se em meros desconhecidos. Tinha sido uma relação turbulenta, mas de reciprocidade singular. Juntos eles passaram por perrengues inimagináveis. Os dois sabiam os mais profundos segredos um do outro.
- Tchau.
- Talvez haja uma chance...
- Pra gente?
- É. Lembra? Do Chico Buarque...eu sempre citei. "Te encontro com certeza, no tempo da delicadeza..."
Os dois riram. Mas era um riso frouxo. Ela tinha terminado tudo e deixado o rapaz sem chão.
- Eu prefiro uma outra música que diz: Mire a fé, e reme.
Mais risos. Desgastados.
- Então quer dizer que pode remar de volta?
- Não, querida. Não é isso. É remar para minha fé. Para o encontro comigo mesmo. Acho que a gente se conhece tanto, mas não conhecemos a gente mesmo...entende? Eu vivia bem com isso, mas você me fez enxergar e agora não dá pra voltar. Como no mito da caverna...
- Eu não posso ficar com essa dúvida. Preciso de certeza.
Ele sentia muita raiva das tais certezas que ela dizia querer ter, mas na verdade nunca teve e nunca foram importantes ou determinantes para a relação que estabeleceram. Muito mais que amantes, eram amigos. Mas um não excluía o outro. E o mais louco é que era ela quem queria terminar justamente por uma situação que, muito longe de atrapalhar, era o símbolo da cumplicidade dos dois.
- Nossas noções de amor são muito diferentes. O seu amor romântico é o distanciado, é o devotado. O meu é o compartilhado.
- Mas acredite, que no tempo da delicadeza, não teremos mais perguntas, apenas sensações...
Ele deixou ela falando sozinha. Quando não há mais o que dizer, é melhor não dizer nada.
Depois de dois anos eles se reencontraram. Refeitos. Referidos. Referenciais.
Não era o tempo da delicadeza. No máximo, o do silêncio. Ou do toque. Se abraçaram, mas não conseguiram dizer mais nada. E continuaram o caminho, que tinha bifurcado fazia muito tempo, apontava para direções muito distintas desde aquela conversa do dia 17 de outubro de 2008.

O que é bonito a gente compartilha! Inspirado em uma conversa inspirada (rs) que tive em uma madrugada qualquer com um amigo jornalista-que-não-é-jornalista (rs) que me confidenciava uma desventura de amor. Não revelo o nome, porque seria uma indelicadeza. E o tempo é o da delicadeza...Minha homenagem ao D.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Sessão de terapia

Ela entra deseperada e senta no sofá, diante do psicólogo, para mais uma sessão:
- Estou preocupada. Bastante. Aliás, muito! Como andei muito frágil nesses tempos, falando demais, acho que todos estão me traindo, todos falam pelas costas...
- É uma forma muito 'persecutória' de ver a vida, não acha?
- Mas não é possível. Eu tenho certeza que o meu amigo disse as coisas que confidenciei. Eu tenho certeza. E agora, possivelmente, o encanto se quebrou por ele não me achar mais digna de confiança.
- Você nunca vai saber.
- Como? Nunca? E se eu perguntar?
- Vai continuar sem resposta. As pessoas falam o que elas querem e do jeito que elas querem, não necessariamente a verdade. O pensamento pode ser parcial, mas a partir do momento em que ele é verbalizado e processado, pressupostos e interesses ficam mais fortes do que qualquer outra coisa e a pessoa diz apenas o que ela quer que você saiba.
- Eu tenho o péssimo hábito de acreditar nas pessoas...
- Isso não é hábito. Isso é inerente a qualquer relação. Confiar é o que faz com que uma relação de amizade comece, por exemplo.
- E desconfiar faz terminar...
- Olhe com outros olhos. Todo mundo age assim. No fundo, todos temos nossos interesses e queremos nos dar bem. Cabe a quem ouve uma confidência ou uma fofoca ter certeza do que é e do que pensa, para não se deixar influenciar.
- Mas e se ele estiver pensando coisas ruins a meu respeito?
- E isso ter feito a relação de vocês dar errado? É um pensamento errado.
- Acha que um amigo não tem influência sobre o outro?
- Tem sim. Mas não tem influência sobre o amor. Essa é a diferença, que parece sutil, mas é drástica.
- Não devia ter falado, não devia ter me aberto, não devia ter confiado...
- Pare de se culpar com relação a isso. Se não deu certo, foi tão somente devido a uma incapacidade dele de amar.

Ela respirou fundo. Fim da sessão. Saiu andando e pensou em tudo. A culpa por ser tão de verdade, tão inteira, tão intensa nas relações: "O bom disso tudo é que com a mesma intensidade com que me apaixono e me entrego, esqueço".

quarta-feira, 30 de março de 2011

Não era bem o que se pensava

Havia um celular muito cobiçado. Ele era o que mais chamava atenção dos clientes na vitrine da loja. Ficava lá, todo bonitão, reluzente, dia após dia. Embora cobiçado, poucos compradores tinham o valor dele. Ele não era caro, ele era diferente. E ser diferente tem um alto preço na vida. Havia um jovem que todo dia ia namorar o celular pela vitrine da loja. Ficava lá horas, sem cansar, sem ver o tempo passar. Era o seu objeto de desejo. Depois de alguns meses, conseguiu comprá-lo. Pagou de uma só vez, com todas as garantias. Em três meses, começou a notar que o celular não eras tão bonito assim, que não era tão bom assim, que não era tão tecnológico assim, que nem queria tanto assim como um dia pensou. O senso comum irritante convencionou dizer que a paixão dura três meses e acaba. Asneira! O que desejam esconder é que as pessoas são tão egoístas que querem apenas sanar suas expectativas. E o celular teria que satisfazê-lo na mesma intensidade da primeira vez para sempre. Manter o encantamento seria responsabilidade única e exclusiva do celular. Mas o dono dele passou a compará-lo aos outros celulares que teve na vida. A expectativa se mostrou pequena depois de pouco tempo. Não foi a paixão que acabou. A paixão ainda nem tinha começado. Mas o dono não quis mais o aparelho por medo de aí fidelizar-se. Aí sim, entregar-se. O que pensaria o outro aparelho, por ele abandonado um tempo antes? Ingrato! Desculpa esfarrapada para a explicação mais simples: sem sentir e ser de verdade, não dá jeito, a expectativa será sempre maior do que a realidade. E aí, a inevitável comparação, fica injusta.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Em vão

De repente, ele não via mais ela. Ela estava lá, mas ele não podia mais enxergar. Ou pensava que não podia. É sempre como se processa a mente de quem está num turbilhão de sentimentos. Confusão. Ele se via apaixonado. Mas pela primeira vez livre. As outras relações que havia acostumado e passado a considerar corretas, eram algo como dependência, repletas de egoísmo. Tudo que o pessoal costuma dizer que é paixão, mas não é. Paixão é intensa, intenção. Afeto, que no sentido radical quando falamos em paixão, pode ser algo como afetar, afetação. Nunca prisão. Se falarmos de amar, então...Doar, no sentido de partilhar. Não depender, não precisar.

Ela, tão viva que era, estava vivendo em uma montanha russa emocional. Não podia mais suportar. Mas insistiu, porque era puro o que sentia. Era verdadeiro, era livre. E deixou para ele um bilhete: "eu tento me aproximar, mas você se afasta". Eram assim os últimos dias. Insuportáveis. Pesados. Cobrados.

Ela cansou. E começou a encontrar o que estava quase morrendo dentro dela mesma: o amor próprio. E, apenas com isso e por isso, ela passou a não ser mais enxergada por ele, que insistia em procurar aquela que tanto desrespeitou. Ela entendeu que se ele fez tantos absurdos com ela, foi porque ela também permitiu. "Toma vergonha, menina!" - ela ouvia uma voz masculina, de um grande homem que passou pela vida dela. Quem sabe até mesmo o pai. E sentiu vergonha.

Ele, de tão indeciso, acabou decidido por ela. Mas ela havia decidido sem exatamente escolher, mas agindo, que não seria mais ele.

Vagava por todos os locais onde ela poderia estar. Onde certamente gostaria de estar. Mas, embora ela estivesse lá, ele não mais a reconhecia. Ficou desatinado e decidiu que ia busca-la até encontrar. A busca se mostrou, após alguns meses, angustiante e dolorida. Nunca mais poderia achar. Quando perguntavam para ele, completamente transformado pela dor da perda, se ainda doía, dizia ele, inconsolável e tão cafona (embora lindas) quanto são as declarações de amor:

- Só dói quando eu penso nela, e eu penso nela quando eu respiro.

*livre inspiração no livro "Malu de Bicicleta", de Marcelo Rubens Paiva, e de andanças por aí...

quinta-feira, 17 de março de 2011

Despedida

Deitados juntos, mas não unidos. Abandonados após terem fatalmente sidos escolhidos pela melhor amiga dos amantes: a solidão. As únicas testemunhas eram os próprios desejos. Não havia nada naquele quarto. Não havia antes nem depois. Estavam despojados de todo e qualquer conceito do que convencionou-se chamar civilização. Não havia pensamento, só sensação.

Era como se o mundo tivesse acabado algumas horas antes e começasse a partir daquele instante. Seria um recomeço.

As palavras calaram no coração dos dois, mas algumas, insistentes, ficavam martelando na cabeça. Não houve sufocamento da verdade, mas a censura, enxerida que só ela, dava as caras de vez em quando.

Quando saía, tudo voltava a ser etéreo. E tão honesto quanto é, em última análise, o desejo de quem tem um objetivo. De quem sabe o que quer. E os dois sabiam muito.

Permitiram que, numa explosão dos cinco sentidos, travados em uma completa confusão dada a interferência de um sobre o outro, se abraçassem, beijassem, gozassem. Foi aflito, quente, fugaz, verdadeiro. Como aquela paixão, que durou um só verão e foi varrida junto com as folhas secas das árvores no outono.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Discurso de Formatura

Faz tempo que queria postar esse discurso, mas sempre deixava para depois. Após três anos, percebo que ele ainda, e cada vez mais, faz muito sentido: é o meu discurso de oradora da turma de jornalismo Cásper Líbero 2007. E um detalhe importante, a poesia que eu declamei no dia, e que está no final do discurso, é a mesma que meu pai, Antonio de Padua Cruz declamou em 1978, quando se formou.

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Discursos diferem em pouca coisa. A essência é sempre a mesma: olhar para trás, fazer um breve balanço de tudo o que aconteceu, de como tudo começou e apresentar perspectivas de um futuro que virou presente. O meu não poderia ser diferente, mas não quero falar de passado. Antonio Candido escreveu certa vez que “registrar o passado é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses em um momento particular que se deseja evocar”. E poderia falar algumas coisas de muitos de vocês que estão sentados aí, com quem dividi alegrias e tristezas. Mas também penso que no passado estão as lembranças, que devem ser partes íntimas e intocadas daquilo que nos dá saudade. Se sentimos saudade é porque valeu a pena. E isso, sim, é muito particular.

Ilustríssima Profa Tereza Cristina Vitali, em nome de quem saúdo todos os componentes da mesa, senhoras e senhores, caros colegas. Há quatro anos pensamos um projeto para nossas vidas. Prestamos vestibular e tínhamos uma vaga noção do que nos aconteceria. Queríamos mudar o mundo! Pensamento ingênuo, porém tão necessário naquele momento.

E se eu perguntar o que foi e o que é a Cásper Líbero, cada um de nós terá uma resposta diferente. A única semelhança está no objetivo: ser jornalista. Mas ainda não o somos: começa agora a caminhada. De antemão, posso apenas nos parabenizar porque fazemos parte do seleto grupo de 9% de brasileiros a concluir curso superior.

Daqui pra frente, muitas pessoas vão se destacar, mas outras tantas vão desistir no meio do caminho e procurar outros nortes. E daí? A vida é assim, feita de encontros e desencontros, lembrando o poeta. Viemos de lugares diferentes e trouxemos na bagagem histórias que pudemos compartilhar durante esses anos. E mudamos muito não? Ainda bem. Eu costumo dividir os anos de faculdade mais ou menos assim: expectativas primeiro-anistas baseadas em teorias que na prática não funcionavam; filosofias de boteco (e a realidade dos estágios) passam a fazer mais sentido que a sala de aula; desencanto e choque de realidade, dúvidas, muitas dúvidas; esgotamento clássico causado pela tríade trabalho, aulas e o famigerado TCC. E vamos sentir falta de tudo, estou certa disso. Um ciclo se fecha. Uma nova etapa começa: agora, mais que nunca, teremos que enfrentar a concorrência, os êxitos e os dissabores do mercado de trabalho. Alguns sairão empregados, mas para a maioria, mais uma luta começa. Pode soar piegas, mas nunca podemos esquecer dá responsabilidade que assumimos quando escolhemos essa profissão. Não se trata de ter foco, escrever um bom lead ou pensar no leitor. É ter comprometimento com a verdade e com a informação. E por falar em verdade, me lembrei de um texto de Carlos Drummond de Andrade. Conta a história que foi encontrada a porta da verdade e que ela estava aberta. Mas para adentrá-la havia uma condição: de que apenas meia pessoa entrasse de cada vez. A confusão esperada mostrou-se real: cada meia pessoa que entrava saía com meia verdade, que não coincidia com a meia verdade da outra metade de cada pessoa. Quando todos se rebelaram e destruíram a porta, descobriram que não havia uma verdade inteira, absoluta e cada um passou a aceitar a verdade que mais lhe conviesse, baseado na sua ilusão, na sua própria miopia. Como não evocar as aulas de ética com intermináveis discussões aparentemente infrutíferas como instrumento fundamental de reflexão da nossa profissão, daquilo que faremos daqui pra frente? Vamos lidar com esses relativismos em todo momento e temos que estar convictos daquilo que acreditamos. Teremos que nos posicionar perante os dilemas que vão surgir e fazer escolhas. Vamos pautar essas escolhas na ética e na dignidade (quem perdeu a dignidade no JUCA é bom começar a procurar...). Um fim glorioso não pode ser justificado por meios indignos.

Alguns podem estar pensando quão quixotescas são minhas palavras. Mas se as ouvirem nas entrelinhas compreenderão que falo do real. Que falo de trabalho e dedicação e passo atestado contra a arrogância e a desonestidade.

Não se trata de mudar o mundo. Isso é uma grande bobagem. Idealismo puro. E mais do que nunca precisamos de mais idéias e ações e menos ideologias verborrágicas. Estou falando sim em promover uma mudança dentro de nós mesmos. Vou fazer um pacto com vocês: nunca tenhamos medo de mudar, parar, voltar, seguir, recomeçar. E como já me alonguei demais, termino, com a licença de todos os presentes, declamando uma poesia que não fala de jornalismo, mas de alma, de ser humano, daquilo que precisamos ter em mente para ir tocando em frente. O texto é do escritor parnasiano e jornalista, colega nosso, Olavo Bilac. Chama-se “Credo”. O credo é uma profissão de fé, que sela a escolha que fizemos e pela qual estamos aqui hoje.



Crê no dever e na virtude.

É um combate insano e rude

A vida em que tu vais entrar.

Mas, sede bom ! Com esse escudo,

Serás feliz, vencerás tudo...

Quem nasce vem para lutar.



E crê no bem,

‘Inda que um dia

No desespero e na agonia

Te vejas pobre e injuriado,

Por toda gente desprezado

Perdoa o mal e crê no bem.



E crê na pátria,

Mesmo que a vejas

Cheias de idéias mal fazejas,

Em qualquer época infeliz.

Não abandones.

Porque a glória

Hás de ver mudar numa vitória

Em cada cicatriz.



E crê no amor !

Se pode a guerra

Cobrir de sangue toda a terra

Levando tudo à assolação.

Mas, pode límpida e sublime

Cair sobre um grande crime

Uma palavra de perdão

domingo, 23 de janeiro de 2011

Carma

23 de janeiro de 2010
Ele falou o que não devia. Ela respondeu o que não devia. Os dois choraram. Ela foi atrás. Ele fugiu. Foi um para cada lado. Acabou.

23 de janeiro de 2011
Ele falou o que não devia. Ela se excedeu. Insistiu como não devia. Os dois choraram. Ela foi atrás. Ele fugiu. Foi um para cada lado. Acabou.

23 de janeiro de 2012
Ele falou o que não devia. Ela desacreditou. Pediu para ele repetir. Ele falou de novo. Ela desatinou. Os dois choraram. Ela foi atrás. Ele fugiu. Foi um para cada lado. Acabou.

Será que ela nasceu para ser amarga ou amada?

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A história do homem que sentia uma coisa e falava outra

Ele tinha uma doença, muito rara e difícil de ser diagnosticada. Tudo que ele sentia, ele dizia o contrário. Se queria comer frango, dizia que queria comer peixe. Se queria ir ao cinema, dizia que queria ir ao parque. Ele vivia atormentado com essas confusões, principalmente porque tinha consciência. Mas não conseguia agir sobre isso. Era incontrolável.
Foi tratado durante muito tempo como esquizofrênico. Mas não era. Tinha outra coisa. Que ninguém sabia o nome: ele sentia uma coisa, mas na hora de verbalizar, dizia outra. Por vezes ele ficou irritado, pois disse coisas que não queria. Mas aí, quando via, já tinha dito e era tarde demais.

Cresceu assim. E, embora sociável e muito bem quisto no círculo de amizades, sempre viveu e foi sozinho. Solitário. Não namorou, não constituiu família, não teve filhos. Porque essas sempre foram suas vontades, mas ele sempre dizia o contrário. O que fazer?

Já passando dos 40 anos, os amigos decidiram presenteá-lo com um passarinho. Um canário do reino. Ele nunca havia falado em animais de estimação, mesmo porque possivelmente nunca tinha pensado nisso. Talvez, se tivesse falado, diria que preferia um cachorro.

Mas o canário do reino passou a ser a sua paixão. Mais que isso, sua razão de viver. Mas isso só ele sabia. E dizia o contrário. Como sempre fez. Cuidava do canário melhor do que dele mesmo. Mas falava coisas horríveis para ele, geralmente antes de dormir, quando o pássaro insistia em cantar uma de suas canções para que ele dormisse melhor. O pássaro era absolutamente devotado àquele homem rude. Ele sentia que, no fundo, era também amado por ele.

Um dia, como fazia sempre, o homem foi colocar o pássaro para dormir, mas esqueceu a portinhola da gaiola aberta. O canário, já cansado de tantos desaforos, saiu e nunca mais voltou.

No dia seguinte, o homem notou que o canário estava calado. Saiu e percebeu que ele o havia abandonado. Disse coisas horríveis e depois começou a chorar e, em um murmúrio sussurrou: "eu te amava". E percebeu que a "doença" que tinha era uma das tantas possíveis manifestações do medo. Medo de perder o controle de uma situação por ser invadido por sentimentos tão fortes quanto irracionais. Medo de revelar seu lado mais frágil, mais verdadeiro. Medo de ser rejeitado. E esse medo, que carregou por toda uma vida, se desmanchava agora, quando, tentando evitar, acabou abandonado. Seu único companheiro continuou sendo, o sempre e cada vez mais fiel: o medo.