quarta-feira, 31 de maio de 2006

Ela é uma super mulher

Clima de Copa do Mundo, nos próximos dias vou publicar perfis que de mulheres notáveis no cenário esportivo da imprensa brasileira. O primeiro é da Soninha Francine. Comentem...

Todos os dias, ela chega aos estúdios da ESPN numa Vespa, vestindo calça jeans, uma mochila amarela nas costas e tênis necessariamente confortáveis nos pés. Maquiagem tem que ser leve e só para gravar. “Maquiagem carregada, me deixa super incomodada. Fazer um programa de esporte com um bocão não tem o menor cabimento”. Aos 38 anos, Soninha divide o pouco tempo que tem entre a Câmara dos Vereadores, as três filhas – Rachel, 22, e Julia, 9, que moram com ela, e Sarah, 18, que mora com o pai – e o programa esportivo Bate-Bola, exibido pelo canal pago ESPN – Brasil e o caderno de esportes do jornal Folha de S. Paulo.
Formada em Cinema pela USP, Soninha começou como VJ da MTV, emissora na qual passou dez anos de sua vida. De lá foi para a Cultura apresentar um programa que reuniria música, teatro, futebol, política e meio ambiente. “Era o que eu queria: um programa diário, ao vivo, com todas essas coisas, pra mim uma combinação deliciosa”. Na época foi envolvida em uma polêmica com maconha e demitida da TV Cultura, mas já estava na ESPN que teve uma posição diferente da qual ela se recorda muito bem. “O Trajano me chamou e falou ‘olha a gente recebeu uma pilha de e-mails nos elogiando por não ter te mandado embora e outra dizendo que iam cancelar a assinatura, porque esporte é saúde e não poderia ter uma drogada na programação’. Aí ele apontou para a segunda pilha e disse ‘esses aqui, se quiserem, vão ter que cancelar a assinatura’”.
Apesar de o ambiente do futebol ter predominância masculina, Soninha acredita que a questão do preconceito está quase superada. “Eu não vou dizer que eu nunca tive problemas com colegas no ar. Nunca teve nada muito descarado, mas já rolou de estar numa mesa e tomar uma cortada. Se um colega dissesse a mesma coisa, talvez não causasse uma reação tão ríspida”.
Com mais de um ano de mandato como vereadora pelo PT-SP, Soninha afirma que não há comparação entre os problemas que enfrentou no futebol e na política. “A política é mais difícil que qualquer coisa. Estou enfrentando problemas, mas não é por ser mulher. É mais uma questão de inflexibilidade. Depende do que você aceita abrir mão pra fazer com que o negócio aconteça”.
Ansiosa com a expectativa de pela primeira vez cobrir uma Copa do Mundo, aponta que Parreira acertou ao convocar Rogério Ceni e deve repensar a idéia de fazer os treinos abertos. “Sempre treinar aos olhos do público é muito complicado. O treino é uma hora onde você deve ter sossego”. Soninha embarca na quinta-feira para a Alemanha e dá a dica para o sucesso da seleção. “Saber a hora de desobedecer. O técnico tem a obrigação de mandar e o jogador de obedecer, mas tem que ter a presença de espírito para o imprevisto. É isso que faz a diferença na hora”.

quarta-feira, 17 de maio de 2006

O aniversário que não foi

Belinha ficou a semana inteira esperando a sexta-feira chegar. Era o dia de seu aniversário. Começaria a completar mais uma vez a mão. Ao mesmo tempo que era muito legal fazer aniversário, a idéia de que passaria a ter vinte e um anos a amendontrava um pouco. Os mais velhos diziam que depois dos vinte, o tempo passaria tão rápido que quando ela parasse para se dar conta, já estaria com os cabelos brancos e algumas rugas no rosto.
Não dormiu bem na véspera de seu aniversário. Confusa, não sabia dizer se era de ansiedade ou por conta da série de pesadelos que a atormentaram a noite toda. Sonhou que era como era: jovem, a pele bonita e sadia, e ao se olhar no espelho, viu no reflexo, uma velha caquética, com a pele cheia de marcas inexoravelmente deixadas pelo tempo que muito velozmente passou. Inconformada, ao se levantar da cama na manhã de sexta-feira, pensou que não queria mais crescer. A bem da verdade era que não queria mudar de idade. Imaginou que dali algumas horas deixariam até mesmo de chamá-la de Belinha. Ela seria Isabella, a anciã.
Lavou o rosto para espantar o sono e desceu as escadas do sobrado que morava desde a infância para o café-da-manhã. Sua mãe estava assistindo a um programa de receitas fáceis para o dia-a-dia da mulher moderna. Nem notou quando a filha chegou.
- Manhê! Uhu...eu estou aqui...
- Nossa filha, me desculpe, estava distraída.
Deu a volta na mesa, aproximou-se de Belinha e deu-lhe um beijo na testa. Não disse nada, apenas cumprimentou-a como de hábito. Belinha estranhou:
- Não está se esquecendo de nada?
A mãe ficou pensando, pensando:
- Não.
- Mãe, hoje é meu aniversário.
Num riso incontido:
- Não é não minha filha, você está se confundindo.
- Você acha que eu erraria o data do meu próprio nascimento?
- Ai ai, acho que anda trabalhando demais...Por que não pede uma folga ao seu chefe?
Belinha ficou sem-graça. Desenchavida, tomou o café com leite num gole só e saiu.
Na faculdade, ninguém se lembrou do seu aniversário, nem mesmo a melhor amiga. Todos diziam que ela havia enlouquecido e riam dela. Mas se perguntasse que dia era então seu aniversário, não recebia resposta alguma. Como poderia acontecer algo daquele tipo?
A esperança de provar sua sanidade era o pessoal do trabalho. Cruzando os dedos, entrou na sala, a espera de um abraço de parabéns. Nada aconteceu. Os colegas mais próximos deram um boa tarde comum e alguns até arriscaram um abraço, por estarem de bom humor. Ninguém se lembrara do seu aniversário.
Perturbada, começou a pensar de que forma provaria que não estava sendo vítima de um surto psicótico. Abriu a carteira e pegou o RG. Seria a prova concreta e cabal de que nascera naquele dia, há vinte e um anos, a partir daquele momento. Para sua surpresa e pavor, a data estava borrada. Não havia dia, nem mesmo, tampouco ano de registro do dia que veio ao mundo.
Voltou para a casa e pediu a mãe o registro de nascimento.
- Isabella, o seu registro ficou em chamas no incêndio da antiga casa. Você não se lembra, porque ainda era um bebê de alguns meses.
Nunca ouvira a mãe chamando-a pelo nome de batismo. Isso a perturbou um bocado. Pensava ser vítima de alguma teoria da conspiração. Estava tão agitada, que sua mãe percebeu:
- O que foi, filha?
- Mãe, se meu aniversário não é hoje, quando é?
- Já foi. Você escolheu isso.
Belinha lembrou da noite anterior, de tudo que havia sonhado, mas não entendeu. O primeiro passo para receber votos de um feliz aniversário é estar plenamente satisfeito com a idade. Todas as épocas da vida têm dores e delícias. Tem que saber dosar. Só compreenderia, com o passar dos anos, que a vida estava passando só ela não.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

O peso da vida

Na varanda da casa, numa quarta-feira qualquer.
- O cemitério tem uma coisa bonita, não sei. É algo que soa quase como uma poesia, uma bela música, não sei.
- Que idéia é essa?
- Nada não, fico só pensando, sei lá. Toda vez que vou a um cemitério, fico passando por entre as túmulos, olhando as fotos, os nomes, a data de nascimento e de morte, aí calculo a idade da pessoa e fico me perguntando: quem era, em vida? Você não pensa essas coisas?
- Não! De jeito nenhum. Só vou a esses lugares quando tem velório, mas faço as honras e me mando em seguida. A proximidade com a morte me dá arrepios - passando as mãos nos braços, num instinto de auto-proteção.
- Não é a morte, são apenas pessoas mortas. Um dia foram como nós e quem sabe conversaram numa quarta-feira, na varanda de suas casas.
- Você me dá medo, as vezes...
- Quando me deparo com aquelas tumbas onde não há foto, fico pensando se, de repente a pessoa era feia demais ou se não houve quem se preocupasse com isso.
- Há há há, essa é boa. Quem se preocupa com isso? Que importa colocar uma foto do morto, se...
Interrompendo:
- É para eternizar o momento entende?!? Em alguma fase da existência da humanidade, em algum lugar, esse alguém teve importância para outro. Não colocar uma foto é enterrar o registro cabal de que aquela pessoa realmente existiu. Não permitir que a vejamos é demasiado cruel! Nunca poderemos saber quem é.
- Você anda estranha...
- E os túmulos de famílias, então. Na Lapa há vários deles. Geralmente são de granito escuro, preto ou marrom. Fico muito curiosa quando leio "Família Guedes da Fonseca". Quais membros já ocuparam o lugar previamente reservado? Quais ainda restam?
- Ai, meu Deus do Céu...Que fixação!
- Não é fixação, é encantamento. Gosto de olhar os túmulos e ficar imaginando como foi aquela pessoa, como terminou sua vida. Será que era boa? Será que era rica ou pobre? Morreu de desastre ou por não agüentar mais o peso da vida?
Silêncio.
- O que mais penso é se era sozinha no mundo ou deixou saudades.
- Esse lance de gostar de cemitério e talz, tá parecendo coisa de gótico - num riso de escárnio
Inebriada pela emoção do devaneio:
- Será que quando eu for enterrada, alguém vai passar pelo meu túmulo e se perguntar quem era eu, afinal?
Puxando o braço da garota, na ânsia de trazê-la de volta a realidade, o irmão diz:
- A morte de mamãe deve ter te perturbado um bocado...
- Muito pelo contrário. Não me preocupa, porque todo mundo sabe o que mamãe foi em vida. Todos sabem que foi boa mãe, generosa, fiel, amistosa, inteligente e tudo o mais. O que me preocupa é ser injusta sabe?!? Nessas de ficar imaginando, corre-se o risco de fazer mau juízo de alguém que já morreu e nem pode se defender mais.
- Por isso é melhor não pensar em mais nada!
- Não é mais possível. Esses pensamentos povoam a minha mente mesmo antes de mamãe partir dessa para melhor.
- É bobagem! Temos que retomar a nossa vida. Só temos um ao outro agora.
- Não sei o que vai acontecer, mas tive um sonho a noite passada.
Numa gargalhada contida:
- Não era de cemitério, né?
- Não, era de vida. E de morte. Era você quem olhava nos meus olhos e dizia que seguiria só. Que havia um lugar lindo prá mim, cheio de poesia para eu cantar, porém, sem a sua companhia.
Os olhos do irmão, arregalados, se encheram de lágrimas, mas não havia mais tempo. Compreendeu que para um destinava a morte e para o outro sobrava a vida.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Trecho de um reencontro

E quando retornei, incontroláveis lágrimas denunciavam a decepção que a visita proporcionava. E não era choro comum de tristeza. Era arrependimento convertido em desespero. Era choro de compaixão.
Ela estava parada, com uma das mãos na cintura e a outra no batente da porta. Aquilo era suficiente desleixo para que eu percebesse que muita coisa havia mudado. Saia rota, cabelos desgrenhados, olhos apagados... Algumas rugas que denunciavam senão os anos de sofrimento aqueles que marcaram uma espera infinita.
Eu cá estava atônito. Inconformado com a crueldade dos desencontros que a vida teima em colocar em nossos caminhos.
Haveria guardado em nossos corações talvez um sentimento que nem o tempo conseguira modificar? Eu a amava mais que tudo! Ainda que muito tempo se passara, parecera que tivera sido agora a pouco. Ela ainda me amaria?
Num ímpeto de reviver aquele amor eu caminhei em sua direção de braços abertos.
Ela sorriu e também me recebeu em seus braços. E o que senti foi uma vaga saudade!

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Uma viagem ao inferno

Uma reconstrução do horror causado pela bomba atômica. Um retorno, 40 anos depois do episódio, resgata a identidade de alguns sobreviventes. Um livro histórico e de narrativa literária, é compreensível “Hiroshima” ser considerado um dos mais importantes livro-reportagem do século XX.
O autor John Hersey deixa transparecer a posição favorável ao “new journalism” e dá uma aula de como fazer esse jornalismo mais emocional e literário, e menos técnico, sem, evidentemente, esquecer da ética e da importância da apuração idônea na produção jornalística.
Por que o livro é uma referência? Primeiro pelo caráter de projeto que ele adquiriu: foi uma reportagem que o perseguiu e certamente o marcou para o resto da vida. Segundo, porque subverte a ordem das coisas, que se convencionou chamar de correta quando se trabalha a informação. Mostra, portanto, que a equação não se fecha: há muitas possibilidades de se dizer algo há alguém, mesclando objetividade jornalística com a subjetividade do ser humano.
Não se atém a teorias, a especulações, a juízo de valor: simplesmente expõe os fatos e os descreve. Como quem teve contato direto e conseqüente envolvimento com aqueles que viveram na pele, os dias de tensão antes e depois do lançamento da bomba atômica, que punha fim a Segunda Guerra Mundial, o seu texto acaba adquirindo um caráter bastante emocional, o que o torna interessante. Por esse motivo, Hersey obtém sucesso ao narrar o inenarrável.
Seu ponto de partida são seis vidas, todas habitantes de Hiroshima, contudo, com trajetórias distintas e bem particulares. O curioso, é que, ao penetrar na vida de cada um desses personagens da vida real, Hersey mantém um afastamento da própria narrativa. A partir da caracterização dos tipos e costumes de cada um, percebe que os personagens contarão a história. A ele, cabe apenas a tarefa de pô-la no papel.
Descrição apurada, construção textual que permite o acesso irrestrito e de fácil compreensão. O fato de apresentar os personagens, esmiuçar suas vidas a fundo, cria a empatia com o leitor, para que esse, a cada página virada, deseje não parar. Essa é a chave do livro: as páginas do livro passam diante dos olhos como filme e emocionam, pois nos transportam, ainda que seja um pouquinho, para um genocídio sem precedentes, deferido por um dúbio ser chamado humano, que se mostra tão cruel, egoísta e, paradoxalmente, tão solidário.

Resenha do livro Hiroshima, de John Hersey