quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Os vizinhos

Eles tinham uma importância ímpar em minha vida. Engraçado que eu esqueci de dizer aquilo quando eles vieram para a despedida que toda a turma do bairro havia organizado. Era outubro de 1973, fazia um sol de primavera tão bonito e quele dia até escureceu um pouco mais tarde. Meus vizinhos partiriam no dia seguinte para uma outra cidade, no sul do Mato Grosso.

Como eu era filho único acabei me apegando muito a eles. Nas minhas memórias mais remotas da infância eles já estavam presentes. Simplesmente não lembro de existir sem que eles também existissem.

Eles eram em três. Formamos o quarteto fantástico com a minha chegada ao grupo.

De repente, numa quinta-feira tão tola quanto essa história, eles foram embora. Me deixaram em um bilhete escrito em papel de pão o endereço da nova morada para que pudéssemos nos corresponder. Eu nunca mais pisei no correio.

Quando decidi que queria cursar psicologia, fui muito criticado. Diziam que eu queria me tratar, vê se pode? Os anos de faculdade passaram tão rápido, que nem deu tempo de ter saudade. Acabei indo para a área de atendimento em clínica. Congnitivista. Aprendi que a gente deve aprender com os erros nesse direcionamento psicológico que adotei, mas nunca consegui colocar tal intento em prática. No mínimo, curioso.

Na época do estágio conclusivo, me deparei com uma dificuldade qualquer no encaminhamento do tratamento de um paciente. Minha supervisora disse para eu procurar outro tipo de terapia para meu auto conhecimento, pois o tratamento a que eu estava me subtendo para não enlouquecer com a história de vida do outro, não estava funcionando. Eu não passaria do estágio se não desse prosseguimento ao tratamento do meu paciente, mas simplesmente não conseguia. Algo não identificado aparecia como obstáculo. Passei por uma analista, por um Jungiano, um behaviorista radical, mas ninguém resolvia meu problema. Continuava tratando o paciente que me incomodava. E o incômodo advinha da semelhança entre as histórias de vida minha e dele. O paciente havia negligenciado as lembranças de alguém que gostava muito. E se torturava por isso. Acabei passando o paciente adiante.

*

Ele estava beirando os 30 anos, e aquela ideia de negligência o perseguia. Numa conversa informal com um amigo da faculdade teve o insight: precisava se reconciliar com seu passado. Mas como encontraria os seus vizinhos se aquele papel de pão amassado foi jogado no lixo tão logo o caminhão de mudança dobrou a esquina?

Tinha os nomes e iniciou sua busca. O ano era 1992 e o computador ainda era privilégio de alguns poucos novos ricos. Comunidades virtuais como existem hoje, coisa de ficção, realidade improvável. Encontrou em uma lista telefônica o que procurava. Telefonou. O telefone era alugado. Mas os locatários sabiam o telefone da família. Precisou insistir muito, inventar uma boa história para conseguir aquele número de telefone.

**

Liguei. Ao som do Alô reconheci a voz de Dona Marta. Um pouco fraca, envelhecida de certo, mas inconfundível. Me identifiquei. Ela se calou por alguns segundos. Pensei que a ligação pudesse ter caído. Insisti. A voz ficou hesitante. Dona Marta adotou um tom grave à conversa. "O que quer depois de tanto tempo?". Fiquei pensando que ela estaria fazendo tempestade num copo d'água. "Pô, éramos apenas crianças", pensei. Mas saiu alto. "Sim, mas Laura esperou você ligar, escrever uma carta, esperou durante anos. E isso nunca aconteceu".

Era injustificável. Qualquer coisa que dissesse não poderia aplacar todo o desapontamento que causei aos integrantes do quarteto fantástico. Resolvi ser sincero. Disse que precisava resolver essa questão que havia ficado aberta e me prendia ao passado. Ela foi mudando o tom, acho que por pena. E permitiu que conversasse com seus filhos. Seu Teixeira havia falecido no ano anterior. Laura havia se casado. Marcos tinha um filho, mas estava solteiro. Juliano, o mais novo, estava estudando medicina.

Liguei primeiro para Laura. Ela foi tão natural, que todo o peso daquela espera, daquela dor de menina que esperou o príncipe encantado por anos, ficou para mim. Era uma voz de mulher, mas o jeito da menina que vi pela última vez. Como se do dia da mudança para aquela ligação houvesse passado apenas dois dias, no máximo, uma semana. Combinei um reencontro. Pedi que avisasse os dois irmãos. Tive receio de que me achassem um maluco completo e desprezassem aquele momento. Mas estava enganado. Não apenas Laura, como os irmãos foram ao meu encontro na data e horário combinados.

Depois de 19 anos, estava indo ao encontro de um passado que me atormentava como homem. E o engraçado é que não eram pelas pessoas, mas pela covardia, pela negligência, pelo péssimo hábito que adquirimos ao longo da vida de pensar que não precisamos de ninguém, que as relações devem ser circunstanciais.

O abraço foi longo. Tinha tanta coisa para conversar, mas, ao mesmo tempo, não tinha nada de assunto. Aquelas pessoas não faziam parte da minha vida. Porque eu não quis. Apenas por isso. Estávamos nos conhecendo naquele instante. Engraçado haver carinho, querer bem, mas não haver qualquer identidade.

Ficou alguma coisa daquele encontro. Não era amizade. Era, no máximo, uma ideia do que poderia ter sido uma amizade prá vida inteira. E agora tenho para quem mandar cartões de natal todo ano. E ligar nos aniversários. Só não consigo ainda acertar o da filha de Laura. Mas acho que ela não se importa tanto assim.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ser desequilibrada...

... é uma questão de ponto de vista. Nem sempre a sua reação diante de um problema é considerada a ideal pelas pessoas que te cercam. Pode ser o inesperado, um ato de desespero. Mas é uma reação.

Sendo assim, partiu de uma ação. E é aí que se deve focar a análise do problema. Sou do tipo que não acredita em meio termo, nem em indecisão. Algo é ou não é – ponto. Aliás, as não-respostas me irritam. Resposta retórica, resposta-pergunta. Tudo que não é direto. Aí, me sinto no direito de surtar.

O que existe de mais peculiar e, ao mesmo tempo, sinistro no amor, é que temos a mania de buscar qualquer esperança para manter vivo o que sentimos; qualquer beira de pano para enroscar os dedos. Essa, aliás, é uma mania que tenho desde pequena: quando preciso me sentir segura, logo me pego mexendo algo entre os dedos, seja a barra da camiseta ou da saia ou uma ponta da toalha da mesa.

O problema é ter a tal ponta para enroscar os dedos, mas achar que nas outras três pontas, outras pessoas fazem o mesmo. E quando perguntar se a desconfiança confere, duvidar dela. Querer desacreditar nela. Só confiar no olhar sincero visto nas primeiras horas da manhã ao acordar ao lado de alguém querido, no braço que te procura à noite e te puxa para perto, no coração que se acalma com o beijo de boa noite.

Esse texto é de autoria de Ana Paula Rodrigues, jornalista, parceira de Rádio SulAmérica Trânsito e de boas conversas, que não deveriam terminar nunca.