terça-feira, 25 de junho de 2013

O amor acabou alguns andares acima...

Fazia frio. O termômetro nas ruas de São Paulo não marcava mais do que 13 graus. O sol era forte. Intenso como costuma ser aquele que se despede do outono para a chegada do inverno. Deitada no sofá, só os pés para fora da coberta, embora protegidos por meias vermelhas.
Eram 27 andares o prédio que eu morava. Em cada um, oito apartamentos. Em cada apartamento, quantas vidas? - ficava sempre a me perguntar. Eu estava no décimo segundo, porque fica aquela coisa de ficar no meio do caminho. Nem muito em cima, nem muito embaixo. A gente não se compromete e fica só observando. É confortável.
Minha pequena sacada de 1 metro por 80 centímetros era um receptor de histórias não verbalizadas. Eram pedaços de histórias que não caíam do céu, mas dos andares acima.
Na última semana foram três tipos de cigarro: Marlboro light, Gudang Garam e um cigarro de palha.
O primeiro era difícil saber. O Marlboro é mais um na multidão. Por ser light, talvez fosse de uma mulher. Ou de um homem sensível. Ou de alguém que estava tentando se preservar, não se envolver tanto. Com o fumo, eu digo. Os brutos fumam logo o vermelho ou algum outro sem filtro.
O Gudang Garam era da moça do 172. Magérrima, macrobiótica e que usava um perfume forte de sândalo. E fumava Gudang. O olfato, de certo, já tinha ido para o saco.
O cigarro de palha era de uns garotos que estudam engenharia na faculdade aqui do lado. Moram no 202, se não me engano.
Teve uma luva também. Dessas cirúrgicas descartáveis. Não consigo imaginar qual procedimento foi feito com elas e porque apenas a esquerda foi parar na minha sacada. Havia algum profissional da área da saúde por aquelas bandas. Ou alguém muito doente que exigia cuidados específicos. Ou era apenas uma dona de casa que não queria estragar o esmalte limpando a privada ou lavando louças.

Mas naquela preparação para o solstício de inverno, algo diferente caiu do andar de cima.
Voltando a cena, estava estirada no sofá. O olhar fixo na tela da TV onde passava um filme de época cujo nome me fugiu. Me distraí por uns segundos e vi, pela cortina entreaberta, um papel a repousar no chão do meu puxadinho. Hesitei por alguns instantes, mas acabei por tomar coragem e enfrentar o frio.
Abri a porta de vidro que separava a sala da sacada e vi, no pedaço de papel fotográfico comiserado, o rosto de mulher. Ela sorria. Contudo, alguém chorava. O amor tinha acabado alguns andares acima. No papel tinham marcas de raiva e dor. Antes de ser picotada, a foto foi amassada várias vezes e depois jogada no lixo. Insuficiente para extravasar a dor de um amor que acabara, a pessoa abriu o lixo, retirou a foto e picou em vários pedacinhos. O ato é quase sempre purificador. Parece que ele consegue expressar o que a gente tem dificuldade de tirar da garganta.
Era jovem a moça da foto. Morena. Dava pra saber que no dia da foto fazia sol porque os cabelos estavam iluminados. Ela sorria, mas sua decisão fez alguém chorar. Antes, no entanto, esse alguém tinha feito ela chorar também. O que é a vida senão uma quadrilha, não é, seo Drummond?
Foram 2 anos, 6 meses e 12 dias de namoro. Do jeito que começou, terminou. Em silêncio. Mas do primeiro silêncio, se fez paz. Do derradeiro, se fez dor. Acho que dói mesmo porque, no fim das contas, a gente é também o que a gente perde. Só consigo ouvir o Jackie Wilson cantando: "I don't need you around, because I found somebody new" e a moça da foto saindo, apagando a luz e fechando a porta.
Ela deixou ele ali, sentado no sofá. Um longo silêncio, um choro doído e as fotos picadas. Os homens, ainda que dramáticos, têm mais facilidade de seguir adiante e picar as lembranças. O amor acabou alguns andares acima. E olha que o inverno nem tinha dado as caras ainda.

Um comentário:

Unknown disse...

Nossa!! Cigarros na sacada me irritam muito, acontece direto comigo.

Quando vai escrever um livro com esses seus contos maravilhosos? Espero ansiosamente!
:-)