terça-feira, 13 de agosto de 2013

Quando foi que me tornei covarde?

Havia passado os últimos quatro meses em um quarto de hospital. Metade do tempo em uma UTI impessoal. Depois em um apartamento privativo coberto pelo plano de saúde. Tudo era artificial: a respiração, a comida, as visitas, a esperança. A doença havia me consumido fisicamente. Mentalmente havia estagnado. Saberia um pouco mais tarde que os danos emocionais já haviam acontecido antes, como num processo que havia encontrado o suposto equilíbrio.
Não sei bem como explicar, mas fui me livrando de todo aquele ambiente controlado, pouco a pouco. Um dia veio o médico e anunciou que eu estava liberado. Havia tido uma evolução surpreendente e me curado. Embora ache que não merecesse. Àquela altura, ,e senti tão desprotegido em um mundo externo que se mostrava tão ameaçador.
A minha internação havia sido repentina. Não achei mesmo que fosse me safar. É engraçado, porque a gente sempre acha que vai voltar para a casa. Às vezes pode não acontecer. No meu caso, eu voltei. Eu tive essa oportunidade. E depois dos meses no hospital, pensei que era hora de me preparar para o dia em que talvez não tivesse volta. Fui mexer naquilo que teria deixado para trás.
Em 35 anos de vida, havia juntado muita coisa. A gente tem a teimosa mania de guardar. Puro apego. No meu caso percebi que, de certa forma, pode ser um jeito de lembrar quem a gente foi um dia.
Foi isso que aconteceu.
Peguei cadernos, pastas e arquivos ditos mortos desde o ensino básico até a faculdade. Decidi que ia deixar ir, que ia jogar fora o máximo de coisas que pudesse, que ia tirar o peso do apego que no fim das contas não nos faz melhores, muito menos maiores, muito menos identificáveis.
Li poesias que escrevia para as garotas no colégio. Tão bonitas na simplicidade das estrofes, algumas rimas chegavam a ser pobres, mas cheias de verdade. Textos que discutiam ideias atemporais: pobreza, corrupção, preconceito, violência. Eram argumentos tão repletos de vida, tão incisivos... Desenhos que expressavam aptidões que ficaram no colegial, não encontraram eco na vida adulta.
Na pasta da faculdade, muitos textos de Durkheim, Montaigne, Spinoza, o jornalzinho da faculdade em que pregávamos o livre pensar e a autogestão dos aglomerados sociais. Eu falava em justiça social nos meus escritos. Eu falava em combate das estruturas pre-determinadas e que não geravam identificação no povo. Eu falava do exercício da solidariedade no dia a dia, entre as pessoas.
Não me reconheci. Me olhei de novo, não me reconheci.
Eu havia me tornado um burocrata. No trabalho e nas relações pessoais. Perdi o contato com minha família e colecionava poucas amizades. Para ser sincero, apenas as que me traziam algo de concreto. Porque essa tese de fazer para o outro sem esperar nada em troca é coisa de idiota. Consegui juntar um bom dinheiro e trocava de carro a cada dois anos. Sempre o modelo do ano seguinte. Tenho um apartamento duplex em área nobre da cidade. Até que tenha sido acometido pela doença, cuidava da minha imagem e sempre andava com boas companhias femininas, se é que me entendem...
Fiquei tentando compreender por qual razão abandonei os conceitos que tanto defendi um dia, que me formaram como pessoa?

"Nunca fiz nada de errado e nem mal a ninguém, pelo menos não no sentido mais tradicional. A minha vida, na verdade, é boa. Me salvei de uma doença, embora minha falta de fé me leve a ter convicção que talvez não mereça tanto assim. Bom, vou agradecer o graça alcançada e seguir. Tá tudo certo. Tá tudo tranquilo"

Decidi pegar todos aqueles registros, colocar em um saco de lixo preto e jogar fora. Tudo resolvido.
Só que ainda não consigo saber quando foi que me tornei um covarde.

5 comentários:

Unknown disse...

Maria parabéns pelo testo...parece que leu o que estou passando e sentindo!

Anônimo disse...

Interessante e sagaz. Tem futuro!

Cabeça disse...

Hum... Interessante saber que além da dança seus dotes se expressam nas palavras também... Só falta ouvir sua voz na rádio para matar minha curiosidade e seu telefone tocar! Pena que você foi embora do cinema sem o número eu saber... =( Ainda bem que a internet pode, ao contrário da maioria dos casos, aproximar as pessoas... ;)

Um beijo,

Du

Unknown disse...

Brilhante! Continue assim :-)

Anônimo disse...

animal!!!!!!!!!!!!!!!!!! asss bquental