terça-feira, 13 de agosto de 2013

Quando foi que me tornei covarde?

Havia passado os últimos quatro meses em um quarto de hospital. Metade do tempo em uma UTI impessoal. Depois em um apartamento privativo coberto pelo plano de saúde. Tudo era artificial: a respiração, a comida, as visitas, a esperança. A doença havia me consumido fisicamente. Mentalmente havia estagnado. Saberia um pouco mais tarde que os danos emocionais já haviam acontecido antes, como num processo que havia encontrado o suposto equilíbrio.
Não sei bem como explicar, mas fui me livrando de todo aquele ambiente controlado, pouco a pouco. Um dia veio o médico e anunciou que eu estava liberado. Havia tido uma evolução surpreendente e me curado. Embora ache que não merecesse. Àquela altura, ,e senti tão desprotegido em um mundo externo que se mostrava tão ameaçador.
A minha internação havia sido repentina. Não achei mesmo que fosse me safar. É engraçado, porque a gente sempre acha que vai voltar para a casa. Às vezes pode não acontecer. No meu caso, eu voltei. Eu tive essa oportunidade. E depois dos meses no hospital, pensei que era hora de me preparar para o dia em que talvez não tivesse volta. Fui mexer naquilo que teria deixado para trás.
Em 35 anos de vida, havia juntado muita coisa. A gente tem a teimosa mania de guardar. Puro apego. No meu caso percebi que, de certa forma, pode ser um jeito de lembrar quem a gente foi um dia.
Foi isso que aconteceu.
Peguei cadernos, pastas e arquivos ditos mortos desde o ensino básico até a faculdade. Decidi que ia deixar ir, que ia jogar fora o máximo de coisas que pudesse, que ia tirar o peso do apego que no fim das contas não nos faz melhores, muito menos maiores, muito menos identificáveis.
Li poesias que escrevia para as garotas no colégio. Tão bonitas na simplicidade das estrofes, algumas rimas chegavam a ser pobres, mas cheias de verdade. Textos que discutiam ideias atemporais: pobreza, corrupção, preconceito, violência. Eram argumentos tão repletos de vida, tão incisivos... Desenhos que expressavam aptidões que ficaram no colegial, não encontraram eco na vida adulta.
Na pasta da faculdade, muitos textos de Durkheim, Montaigne, Spinoza, o jornalzinho da faculdade em que pregávamos o livre pensar e a autogestão dos aglomerados sociais. Eu falava em justiça social nos meus escritos. Eu falava em combate das estruturas pre-determinadas e que não geravam identificação no povo. Eu falava do exercício da solidariedade no dia a dia, entre as pessoas.
Não me reconheci. Me olhei de novo, não me reconheci.
Eu havia me tornado um burocrata. No trabalho e nas relações pessoais. Perdi o contato com minha família e colecionava poucas amizades. Para ser sincero, apenas as que me traziam algo de concreto. Porque essa tese de fazer para o outro sem esperar nada em troca é coisa de idiota. Consegui juntar um bom dinheiro e trocava de carro a cada dois anos. Sempre o modelo do ano seguinte. Tenho um apartamento duplex em área nobre da cidade. Até que tenha sido acometido pela doença, cuidava da minha imagem e sempre andava com boas companhias femininas, se é que me entendem...
Fiquei tentando compreender por qual razão abandonei os conceitos que tanto defendi um dia, que me formaram como pessoa?

"Nunca fiz nada de errado e nem mal a ninguém, pelo menos não no sentido mais tradicional. A minha vida, na verdade, é boa. Me salvei de uma doença, embora minha falta de fé me leve a ter convicção que talvez não mereça tanto assim. Bom, vou agradecer o graça alcançada e seguir. Tá tudo certo. Tá tudo tranquilo"

Decidi pegar todos aqueles registros, colocar em um saco de lixo preto e jogar fora. Tudo resolvido.
Só que ainda não consigo saber quando foi que me tornei um covarde.

terça-feira, 25 de junho de 2013

O amor acabou alguns andares acima...

Fazia frio. O termômetro nas ruas de São Paulo não marcava mais do que 13 graus. O sol era forte. Intenso como costuma ser aquele que se despede do outono para a chegada do inverno. Deitada no sofá, só os pés para fora da coberta, embora protegidos por meias vermelhas.
Eram 27 andares o prédio que eu morava. Em cada um, oito apartamentos. Em cada apartamento, quantas vidas? - ficava sempre a me perguntar. Eu estava no décimo segundo, porque fica aquela coisa de ficar no meio do caminho. Nem muito em cima, nem muito embaixo. A gente não se compromete e fica só observando. É confortável.
Minha pequena sacada de 1 metro por 80 centímetros era um receptor de histórias não verbalizadas. Eram pedaços de histórias que não caíam do céu, mas dos andares acima.
Na última semana foram três tipos de cigarro: Marlboro light, Gudang Garam e um cigarro de palha.
O primeiro era difícil saber. O Marlboro é mais um na multidão. Por ser light, talvez fosse de uma mulher. Ou de um homem sensível. Ou de alguém que estava tentando se preservar, não se envolver tanto. Com o fumo, eu digo. Os brutos fumam logo o vermelho ou algum outro sem filtro.
O Gudang Garam era da moça do 172. Magérrima, macrobiótica e que usava um perfume forte de sândalo. E fumava Gudang. O olfato, de certo, já tinha ido para o saco.
O cigarro de palha era de uns garotos que estudam engenharia na faculdade aqui do lado. Moram no 202, se não me engano.
Teve uma luva também. Dessas cirúrgicas descartáveis. Não consigo imaginar qual procedimento foi feito com elas e porque apenas a esquerda foi parar na minha sacada. Havia algum profissional da área da saúde por aquelas bandas. Ou alguém muito doente que exigia cuidados específicos. Ou era apenas uma dona de casa que não queria estragar o esmalte limpando a privada ou lavando louças.

Mas naquela preparação para o solstício de inverno, algo diferente caiu do andar de cima.
Voltando a cena, estava estirada no sofá. O olhar fixo na tela da TV onde passava um filme de época cujo nome me fugiu. Me distraí por uns segundos e vi, pela cortina entreaberta, um papel a repousar no chão do meu puxadinho. Hesitei por alguns instantes, mas acabei por tomar coragem e enfrentar o frio.
Abri a porta de vidro que separava a sala da sacada e vi, no pedaço de papel fotográfico comiserado, o rosto de mulher. Ela sorria. Contudo, alguém chorava. O amor tinha acabado alguns andares acima. No papel tinham marcas de raiva e dor. Antes de ser picotada, a foto foi amassada várias vezes e depois jogada no lixo. Insuficiente para extravasar a dor de um amor que acabara, a pessoa abriu o lixo, retirou a foto e picou em vários pedacinhos. O ato é quase sempre purificador. Parece que ele consegue expressar o que a gente tem dificuldade de tirar da garganta.
Era jovem a moça da foto. Morena. Dava pra saber que no dia da foto fazia sol porque os cabelos estavam iluminados. Ela sorria, mas sua decisão fez alguém chorar. Antes, no entanto, esse alguém tinha feito ela chorar também. O que é a vida senão uma quadrilha, não é, seo Drummond?
Foram 2 anos, 6 meses e 12 dias de namoro. Do jeito que começou, terminou. Em silêncio. Mas do primeiro silêncio, se fez paz. Do derradeiro, se fez dor. Acho que dói mesmo porque, no fim das contas, a gente é também o que a gente perde. Só consigo ouvir o Jackie Wilson cantando: "I don't need you around, because I found somebody new" e a moça da foto saindo, apagando a luz e fechando a porta.
Ela deixou ele ali, sentado no sofá. Um longo silêncio, um choro doído e as fotos picadas. Os homens, ainda que dramáticos, têm mais facilidade de seguir adiante e picar as lembranças. O amor acabou alguns andares acima. E olha que o inverno nem tinha dado as caras ainda.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Utopia

Existiam dois lados. O lado A e o lado B. O poder supremo tentava qualificar cada um dos lados, o que dicotomizava ainda mais a massa. Segregava os bons dos maus. Mas o poder, afinal, de que lado estava? Ele existia acima de todas as coisas e era indefinível, contudo aceito pelos dois lados.
Algo naquele mundo havia se modificado. Há algum tempo um dos lados decidira deixar de acatar e passou a questionar. Eram tempos em que os extremismos cresceram e os argumentos caíram por terra. Mas quem precisa de argumentos quando existe uma causa muito evidente que mobiliza? A postura de respeito se mantinha, mas havia mudado o foco. Porque respeitar não é necessariamente obedecer. Muito menos aceitar. Um dos lados ficava, a cada dia, mais impregnado de um inconformismo gestado por muitos anos de inércia. O outro era tomado de uma inveja maligna, porque, no fundo, queriam ter forças para romper paradigmas, mas o que está arraigado é dolorido de se deixar desprender. Tamanha inveja que se transformou em ira. Quando se encontravam, nas ruas e avenidas daquele lugar, a liberdade de um dos lados foi gerando a intolerância do outro. Mas não tinham bons e maus. Tinham libertados e comandados. E os comandantes, sem rosto e com os olhos bem distantes dali. Afinal, o poder traz tantas responsabilidades, não é mesmo?
Foram dias difíceis. A questão não era de convencimento, mas de pertencimento. E, por mais evidente que isso possa parecer, mudanças exigem um tempo para acontecer. Muita persistência. De um lado em falar, do outro em calar. Até que um dia, o lado que oprimia se percebeu oprimido. Tudo aquilo não fazia o menor sentido. Quem estamos defendendo, afinal? - questionava um dos lados.
No encontro final, o catalisador da mudança, um dos lados apareceu nu. Unificada, a massa despida de qualquer pressuposto, seguia, distribuindo sorrisos e palavras de ternura. A cada metro, ela aumentava de tamanho. Do outro lado, a massa obediente, iluminada pela escuridão e um peso imenso nos ombros, sentia o dificuldade de enxergar, o que impedia uma movimentação ordenada. Se encontraram. (pausa).

Cada um do outro lado, foi deixando as armas no chão, tirando o peso dos ombros e se uniu aos outros. Porque, no final das contas, era feito da mesma matéria do outro. Os olhares não mais se cruzavam em confronto sem sentido, mas miravam para a mesma direção e a caminhada nunca mais parou. Se sentiram compreendidos e representados. Deixaram de acatar, passaram a questionar. O poder supremo, de onde vinham as ordens, ficou tão envergonhado por ter se deslegitimado, que, solitário, desapareceu. Ainda está sendo procurado. Vivo ou morto, oferece-se grande recompensa. Se for achado, terá como punição viver exatamente com aquilo que dizia oferecer para os outros. E terá vida eterna, mas não vai sublimar, não. Ficará na terra.

Porque, às vezes, é preciso desconstruir, distanciar, analisar e, só depois disso tudo feito, começar a reconstrução.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Espelho, espelho meu

O que a gente vê no outro e rejeita é o que temos de pior e mais obscuro em nós mesmos. Esse é o espelho mágico na sua concepção mais assemelhada com a caixa de pandora. O mais maluco é que, muitas vezes, a outra pessoa não é aquilo na essência, mas nós a enxergamos daquele jeito. O que é bem diferente. E aí, pronto: daí para uma injustiça no julgamento é um passo. E acontece muito.

A história toda é que, equivocadamente, a pessoa acha que o outro, sejam os defeitos ou qualidades, podem ser determinantes para as ações dela. Mas não podem. Ou não deveriam poder, ao menos. Se estão podendo influir nesse nível, algo de muito errado está acontecendo.

Se alguém insiste em te rotular - ah, você é louca, ah, você é pavio curto, ah, com você não tem diálogo, blablabla - e imputa em você o bem ou mal estar dela, o problema não está em você, o problema está nela. É o espelho mágico: ela é exatamente tudo o que falou para você. E piorada. Porque quando estamos assim, acabamos sendo castradores com os erros dos outros e generosos - e por que não, condescendentes - com nossas falhas. Criamos uma capacidade quase cativa de nos perdoarmos, mas somos incapazes de voltar para o outro um olhar generoso, um olhar cúmplice.

O espelho mágico pode transmutar em atitudes externalizadas de maneira negativa. Quem se projeta no outro é a isca ideal para relações amorosas de dependência, daquelas que você não consegue se livrar nunca mais na sua vida. Trágico! Corre-se o risco também, ao se comparar, de adotar uma postura arrogante: o inferno são os outros. O inferno sempre é o outro quando o inferno é você.

Não aceite um dedo em riste que é incapaz de se entrelaçar nos seus e te puxar pra cima!
Mesmo porque quem faz isso, na verdade, está apontando os outros três para si mesmo.

As acusações são as melhores justificativas para quem não assume sua própria vida e quer, ainda por cima, colocar no outro a responsabilidade pelo fracasso de um objetivo. Afinal, para que reconsiderar, compreender as emoções do outro, se você pode pisar, limpar os sapatos quando chega em casa e seguir em frente, não é mesmo?

Já se olhou no espelho hoje?

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Ela não gosta de se sentir feliz. Dá um medo danado.

Novembro de 2009
A amiga ouve o aviso de mensagem no celular. Abre e lê: "Estou tão feliz, mas estou com medo. Apenas diga que vai dar tudo certo"
Ela rapidamente responde: "Vai dar, sim, amiga. Já está dando"
Três meses depois, não deu.

Novembro de 2010
Ela conversa com a amiga no sofá da casa dela:
- Estou tão feliz, mas não gosto disso, porque dá medo. Apenas diga que vai dar tudo certo.
A amiga interrompe:
- Vai dar tudo certo, sim, é claro. Depois de tudo que você esperou. Já deu!
Três meses depois, não deu.

É possível, roteirista, essa personagem tentar mais uma vez com o mesmo otimismo e coragem?

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ensaio sobre morrer e nascer - 1º movimento

Ela abre a porta de casa devagar e vê a irmã, que estava passando uns dias por lá, sentada no sofá, segurando o controle remoto frouxamente e com olhar fixo.
- Você não imagina o que acabou de acontecer...
- O que?
- O Paulo morreu. Eu o vi hoje de manhã na academia, conversamos, não eram nem 11h30...
- Como sabe?
- Marcelo ligou.
- E morreu do que?
- Acidente de moto. Eu tinha visto ele hoje. Hoje de manhã, faz menos de 24 horas que conversamos, ele tava animado, que loucura...

Ficou pensando que a vida é breve e não dá aviso. Não achou que era fácil demais morrer, mas pensou na fragilidade da vida. Pensou quanto tempo já havia perdido em discussões sem sentido com alguém que amava, enquanto poderia estar vivendo esse presente que também é breve. Pensou que talvez devesse ligar para uma amiga com quem não falava fazia tempo para dizer que se importava com ela. Lembrou que a última vez que tinha ido visitar a família, foi... quando mesmo??? Pensou na merda de vida que levava fazendo planos e esquecendo de viver o que naquele momento lhe era disponibilizado. Se emputeceu ao constatar que, enquanto se esperam grandes coisas (uma grande paixão, um grande salário, uma grande promoção, uma grande viagem), as pequenas, tanto ou mais importantes, escorrem pelo ralo. Irritou-se ao notar que estava buscando certezas e a única certeza o amigo da irmã dela tinha encontrado um pouco mais cedo. Sentiu-se tola pelas vezes que não arriscou, pelas vezes que não tentou, pelas vezes que insistiu quando deveria desistir e vice-e-versa.
- Na verdade, a vida é uma série de nascimentos e mortes nem sempre coordenados. Mas há quem fique apenas com uma das partes. E é um lixo! Quem nasce a todo momento vive só no futuro. Quem morre sempre vive no passado - disse a irmã, interrompendo o fluxo de pensamento.
Elas se puseram a fazer o exercício de imaginar o que ele sentiu nos últimos dias: estava feliz hoje? Será que conseguiu comer o hamburguer daquela lanchonete que abriu na cidade? O que pretendia fazer amanhã? E no próximo feriado? Talvez até mesmo tivesse comprado o ingresso para um show de rock concorridíssimo que não vai mais ver. Por causa da moto. Por causa do carro que não viu. Porque ficou desgraçadamente no ponto cego de um caminhão. Mais pelo ocaso eterno, que pelo acaso, ironicamente quase sempre tão previsível. A vida não dá recado, mas passa recibo. E não aceita devolução.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Por que não devemos ler e-mails antigos?

O ser humano é apegado. Não consegue se desprender de nada. Sentimentos, emoções, coisas materiais, documentos... Quem não tem o hábito de deixar arquivados e-mails antigos? Pode até deixar, sei lá, por precaução, se no registro contiver algo que pode te salvar ou mesmo ser usado contra você, até vai. Mas um alerta: nunca leia e-mails que datam quatro anos atrás, por exemplo. Vale para cartas também, embora eu tenha certeza de que só eu ainda escrevo e mando cartas...enfim, sejam cartas ou e-mails: não recupere. Não faça essa bobagem! O melhor é fazer o exercício de apagar. Os enviados, sobretudo. Faça esse exercício: é libertador.
Caso contrário, você, uma hora ou outra vai voltar para essas caixinhas antigas, vai reler e vai perceber que perdeu o cara da sua vida, porque pensou que ele era seu amigo, mas na verdade ele sempre quis ser seu namorado (acontece...). Você vai achar que era mais realizada e bem sucedida no trabalho, mesmo sendo uma grande mentira. Você vai achar que era mais livre, mais bonita e tinha mais amigos, o que pode até ser verdade. Mas, afinal, para que saber? Para que mexer em uma memória que ficou justamente ali, para ser lembrada remotamente, jamais revivida, digerida novamente. Dá indigestão esse tipo de coisa.

O que ficou no passado não foi para lá e ficou à toa. Tem sempre uma razão. Sempre que nos deparamos com escritos antigos, sejam de amigos ou amores (ou os dois ao mesmo tempo), nos dá a impressão que era perfeito. Mas então por que não deu certo? Com certeza, porque não era tão perfeito assim... E ficamos com a sensação do ideal. E aí, quando comparamos com o real, o ideal ganha disparado. E aí ficamos vivendo patinando nesse passado lamacento e irreal, que deveria ter ficado alí, para trás, no lugar dele. E nos iludimos que poderia haver um futuro se algo fosse recuperado. Bobagem! Não dá pra pegar as declarações passadas e colocar no presente. Não combina, não dá jogo, não dá liga. A história é outra, as pessoas são outras, o momento é outro.

Mesmo porque há uma dose forte de pretenso controle do futuro ao fazer isso. É mais seguro saber que você terá uma segunda chance e que poderá fazer diferente (ou fazer tudo igual e ter um resultado diferente). É reconfortante, né? Mas, de uma forma geral e na maior parte das vezes, a vida não dá uma segunda chance. Quando (e se) der, aproveite! Porque tá cheio de gente por aí que tem até terceira e quarta chance e joga no lixo. Esses sim, os patinadores no lamaçal de amargura do passado.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Solidão

Ela vivia em um apartamento em uma cidade grande, morava sozinha, tinha um bom emprego, tinha alguns amigos. Cursou uma boa faculdade. Com alguns amigos dessa época ela ainda tinha contato. Era um pouco misteriosa, não era afeita a barzinhos, mas gostava de baladas. Algumas. Tinha um passarinho azul de peito branco que chamava carinhosamente de Dó. Mas era por causa da primeira nota musical.

Vivia sua vida de maneira correta. Ou ao menos tentava. Se envolvia casualmente com alguns caras, mas nenhum dos casos durava mais de dois meses. Ela não se importava. Sempre havia alguém novo e disposto a conhecê-la. Ela era muito bonita, chamava a atenção de homens e mulheres. Gostava de se cuidar. Tinha os cabelos longos, negros, pele bem branca, olhos verdes. Era agradável, não muito sorridente, contudo simpática.

Sua semana era organizada entre trabalho, afazeres domésticos, cinema e livros que sempre ficavam por terminar na sua cômoda. Ela tinha o hábito de começar uma história e quando estava do meio para o fim iniciar  outro livro, deixando aquele por terminar.

Pagava suas contas em dia, era muito bem quista pelos vizinhos e nunca tinha recebido qualquer reclamação. Vivia, na verdade, em um pleno silêncio na maior parte do tempo.

Um dia ela se matou. É, banal assim mesmo, porque o fim das coisas quase sempre é banal. Saiu de casa, foi ao supermercado comprar algumas coisas e na volta parou e contemplou o pôr do sol. Deixou as sacolas por um instante de lado e saltou do viaduto. Todos ficaram sem entender. Mas se matou por que?

Solidão.

Há quem não suporte a solidão e enlouqueça, andando por aí falando aos quatro ventos sem qualquer interlocutor nas ruas das grandes cidades, em praças e supermercados 24 horas. Há quem goste tanto dela, que fique fissurado a ponto de escolhê-la para sempre.

Nota: Qualquer semelhança com alguma história que conheçam é mera coincidência. Apenas coincidência...

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A visita

O que você pensa antes da morte? O que passa pela sua cabeça minutos antes de ser levado para um passeio para a eternidade por ela? A Morte se tornou soberba com o passar da vida, porque sabe que, não importa com quantas mulheres você se relacione, ela será a última.

(Respiração curta. Fraca.)

É nisso que ele pensava olhando para o teto daquela UTI. Havia uma TV. Desligada. A cama pequena e com duas grades ameaçadoras.

(Respiração. O Bipap sobre um pouco e depois desce, cansado de trabalhar)

Melhor que estivesse em uma prisão. É assim que me sinto. Quando alguém vem me visitar fica 20 minutos e logo passa a enfermeira, tal qual uma carcereira: "Acabou a visita". Mas afinal de contas que foi que eu fiz de errado para estar aqui preso? Encerrado... Encelado... Talvez tenha vivido demais. Mas vivi bem, todo o tempo me foi, de fato, prazeroso e muito bom. 

(Um bipe insistente no capnógrafo do paciente ao lado. Nos momentos de intervalo, é o silêncio que fala)

A hora não passa dentro de um hospital. Em uma UTI é pior ainda. Não se vê a luz a do sol, nem a da lua. Não se sabe se chove ou faz calor. É uma bolha hermética, que pode salvar, mas pode enlouquecer.

(Respiração. Incômodo. Vira de um lado. Dor)

Quando eu sair daqui, vou tentar ser mais tolerante com os outros. Reclamar menos do que acontece, afinal, quando está ruim para mim pode estar para outras pessoas. Vou aceitar mais convites, vou me arriscar até a algumas loucuras... E a máxima mais verdadeira, de fato, é aquela que diz que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. Opa, tá chegando alguém...será ela?


(Respiração acelerada. O bipap se desprende do lado esquerdo. Difícil respirar)

Ele queria ver a amada, a Vida, antes que a Morte chegasse. Mas a Vida não podia vê-lo na UTI, ia ficar frágil no território da Morte. Vieram dois fiéis escudeiros, mensageiros da Vida e explicaram a impossibilidade. Falar ao telefone em um centro de tratamento intensivo era proibido, mas dada a circunstância.

(Brilho nos olhos. Sorriso sem dentes. Ânimo.)

- Qual o problema em burlar uma regra que ninguém respeita? E por um motivo nobre. Ligue agora e eu arcarei com as consequências.

Assim foi feito. Pelo celular, ligamos para ela, que atendeu:
- Alô?
Do outro lado da linha, a Vida, cheia de alegria, podia ser ouvida:
- Alô!!! É você? Não acredito que ligou.

E falaram de coisas tão belas e únicas, tão cúmplices e ininteligíveis para os que observavam aquela cena de amor, mas que fazia todo o sentido para a Vida.

Desligou:
- Pronto. Agora sim, tudo vai ficar bem! Não importa se vida ou morte, estou em paz.


*em homenagem ao Toninho Cruz, meu avô guerreiro. 

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Enquanto o amor não vem

Enquanto o amor não vem, escancare as janelas da sua casa todos os dias, mesmo nos de chuva. Se molhar o chão, enxugue. Se molhar o tapete, estenda no varal. Se for um dia de sol, contemple, respire fundo e agradeça. Enquanto o amor não vem, troque a cor do seu esmalte toda semana, mude o corte de cabelo, gaste uma grana em um creme novo porque gostou do cheiro ou simplesmente porque quis. Enquanto o amor não vem, teste novas receitas, compre um bom vinho toda semana, seja para tomar sozinha ou acompanhada, faça novas amizades, chame os velhos amigos para um café ou mesmo para uma cerveja. Enquanto o amor não vem, jogue fora coisas velhas que guardou e nem se lembra o motivo, limpe suas gavetas, tire tudo do armário, limpe, doe algumas roupas e sapatos que não te servem mais. Enquanto o amor não vem, tente começar a meditação, vá saltar de paraquedas, vá em um boteco que nunca foi antes, vá naquele restaurante que achava caro, mas morria de vontade (nem que gaste além da conta, pelo menos uma vez), compre aquele vestido que ficou namorando na vitrine e que vai combinar com o par de sapatos que ganhou no último Natal. Enquanto o amor não vem, foque no seu trabalho, pense em um negócio que poderia virar empreendimento (nem que seja só sonho), invista em habilidades que você tem, mas que nunca desenvolveu. Enquanto o amor não vem, reúna os amigos em um final de semana na casa da sua família, cante no karaokê (ou no chuveiro), faça um bate e volta na praia, faça uma viagem mais longa e barata, se aventure em uma trilha, quem sabe sozinho. Enquanto o amor não vem, olhe para dentro de si, fique chocado, fique decepcionado, reconheça suas fraquezas, mas veja o quão maravilhoso é ter o poder de reescrever, de refazer, de realinhar, de se recolocar, de recomeçar, basta um pequena dose de querer (e é bem pequena mesmo, o resto flui!). E enquanto, tolo, espera fazendo coisas maravilhosas para você mesmo a chegada do amor, vai notar que ele chegou e você nem percebeu... Porque não tem que esperar, porque não tem hora certa. O momento é todo dia. Todos os dias, quando faz algo para si mesmo, você fortalece o amor mais genuíno e importante, que as pessoas - e livros de auto-ajuda - chamam de amor-próprio, mas eu prefiro chamar de "auto-amor". Não é por acaso que o poeta disse: "Para ser grande, sê inteiro". Quem acha que está no outro a possibilidade de amar (ou a razão disso) é um mutilado! Porque não é inteiro, é metade. Porque o amor não vem, o amor está em todas as coisas que fazemos. Porque o amor não está no outro, está em você. O outro é que chega, nunca para completar, mas para somar o amor dele ao seu e juntos caminharem. Lado a lado e adiante.

ENCONTRO DAS PALAVRAS