quinta-feira, 2 de junho de 2011

O impulso

Sexta-feira, 10 de abril de 2009, 13h

A Avenida Sumaré, no sentido de Pinheiros, estava impraticável. Como isso poderia acontecer em pleno feriado? Na rádio informavam que um acidente bloqueava duas faixas da avenida. Um atropelamento. Eu seguia de bicicleta no sentido oposto e, movida por uma curiosidade quase mórbida, procurava a tal ocorrência. Quando cheguei, vi um corpo estendido no chão. Sirenes da polícia. Joguei a bicicleta no canteiro e fui mais perto. Os olhos estavam abertos, atônitos. Eles olhavam para mim. Os ossos, estraçalhados, faziam com que o tronco tivesse virado uma massa amorfa que abraçava o asfalto, entre duas faixas da avenida. Ele vestia camiseta branca. Acho que era Hering. A perna esquerda estava estirada, o joelho direiro levemente dobrado para fora. Ele vestia um jeans bem básico. Tipo Lee ou Levi's. Os peritos chegaram. Não tardou muito para o IML chegar também.
- O que foi?
- Suicídio. Aproximadamente 27 anos.
- Qual o nome dele?
- Não sei. Está sem documentos.
Olhei de novo para aquele rapaz. Cabelos castanhos, na altura dos ombros. Barba por fazer.
- Como ele pulou, o senhor sabe?
- Pela forma com que caiu foi de costas.
Olhei para o corpo no chão. Depois, olhei para cima. Muito alto era o viaduto da Avenida Dr. Arnaldo... Olhei novamente para o corpo. E o rosto. E enxerguei Jesus Cristo. Que loucura. Coloquei a mão na testa. E voltei a olhar. O que tanto afligia essa alma perturbada? Quem ele deixou para trás? Quem vai chorar por ele? Por que teria se matado justamente numa Sexta-feira Santa? E logo depois do almoço!

Domingo, 12 de abril de 2009, 9h

Domingo de Páscoa. Eu queria estar com a minha família, mas eu estava trabalhando. Eu passava pela Avenida Prestes Maia, um pouco depois da passagem subterrânea Tom Jobim, e vi um ônibus, na via de acesso para a avenida, na diagonal. Na traseira do coletivo, um carro com a frente completamente destruída. Era o que sobrou de um Celta preto. Parei um pouco adiante. Desci. A faixa de isolamento já separava o local da curiosidade dos populares, mas eu consegui entrar. Fiquei parada por alguns segundos tentando entender como aquilo tinha acontecido. Como um carro poderia entrar com tamanha violência. As portas estavam abertas e no chão alguns sinais de que o socorro havia passado por ali um pouco antes. Pensei: "Não há mais ninguém no carro e todos devem estar recebendo atendimento". Me aproximei e o que vi me causou primeiro estranheza, depois asco e, por fim, horror. O banco do passageiro foi violentamente invadido pela quina traseira do ônibus e, nesse cenário, era possível ver o que sobrou da frente de um carro misturado com o que sobrou de uma pessoa. Ou melhor, do que um dia foi uma pessoa. Custei acreditar. Tive que contemplar aquela cena terrível para que eu pudesse acreditar. Eu podia ver metade do rosto. O olho estava aberto. Assustado. O braço esquerdo largado com a palma da mão para cima. Era moreno. E tinha barba. Tive vontade de chorar, mas fiquei tão chocada com a revelação que as lágrimas não saíram.
- Onde estão os outros, policial?
- Foram levados ao pronto socorro. Eram cinco. Suspeita de embriaguez...
- Tá certo. Você vai encontrar sua família?
- Por que?
- Porque hoje é Páscoa. Se for encontrá-los, diga que mandei votos de um bom renascimento.
- Obrigada. Para sua família também.
Fiquei pensando que queria estar com a minha família. E isso, é claro, inclui os meus amigos que formam a família que a gente escolhe. Mas estava só. Pensei que era Páscoa e que isso significava a ressurreição. Será que ele ia renascer em outro plano? De onde estaria voltando? De uma festa que durou toda a madrugada? Será que ele quis estar ali, no banco do passageiro, ou simplesmente aconteceu? E os que ficaram, será que iriam renascer para o que a vida tem de bom?

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Duas mortes. Ambas movidas pelo impulso. Mas um de vida e outro de morte. O rapaz que pulou do viaduto queria fugir da vida, porque, por uma ou diversas razões que não interessam a mim nem a você, caro leitor, ela tinha ficado pesada demais para ele. E o contrário da vida é a morte. Simples assim. O rapaz que morreu no acidente de carro buscava a vida. Queria viver tudo, cada instante, com o máximo de gozo momentâneo que pudesse suportar. E na ânsia de buscar mais vida, acabou prepotente, e em um vacilo, encontrou a morte. Mas era vida que ele buscava. Me arrisco a dizer que essa é a única diferença. Porque nas duas histórias, invariavelmente, falamos de dois suicidas.

6 comentários:

Juliana Elias disse...

Que.. triste-bonito

Maria do Mundo disse...

obrigada Ju! bom te ver por aqui!

Erica Hans disse...

Teresa, você como sempre, deixando a gente calada com as palavras. Sozinha em casa, soltei um " nossa ' em alto e bom som.
Parabens!

Porco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Porco disse...

Belíssimos escritos!Diria...,(in)scritos!Gritos!

Fernando Fávaro disse...

Vc escreve muitíssimo bem, meus parabéns! Seu texto exprime muito bem a melancolia de quem testemunha tais fatos.